FILIAÇÃO
E MULTIPARENTALIDADE: (MULTI)POSSIBILIDADE DE AFETO
Bernadete Schleder dos Santos[1]
Daliana Schmidt[2]
Maurício da Costa Vidal[3]
1.
DA
(NOVA) CONFIGURAÇÃO DE FAMÍLIA
Até o advento da
Constituição Federal de 1988, o conceito jurídico de família era extremamente
limitado e taxativo, pois o Código Civil de 1916 somente conferira o status familiae àqueles agrupamentos
oriundos do casamento válido e eficaz, não admitindo qualquer outra forma de
arranjo familiar. A antiga legislação impedia a dissolução do casamento,
impunha um caráter patriarcal e patrimonial nas relações familiares, além de
discriminar qualquer outra forma de união que não fosse pelo matrimônio, bem
como da prole que desta viesse a surgir.
A
Constituição Federal de 1988 desconstituiu a ideologia matrimonialista e,
atendendo à evolução social, trouxe significativas inovações no âmbito familiar,
a ponto de alterar o paradigma de família até então vigente. Ganha espaço no
cenário jurídico, novas e democráticas estruturas familiares, tais como as
uniões estáveis, a família monoparental, a igualdade jurídica dos filhos (havidos
ou não do casamento, ou por adoção).
Sabe-se
que a família é a base da organização social do Estado e as relações familiares
são reflexos da realidade social e cultural que se encontram em constante
mutação.
Nesse cenário de
efetivas mudanças sociais, os relacionamentos conjugais e as uniões estáveis
passaram a apresentar uma nova dinâmica. A possibilidade do divórcio e da
dissolução da união estável fez com que surgisse uma nova reorganização
familiar, a qual se denomina de família reconstituída.
Apesar de a Carta Maior
ter trazido inovações no direito de família, especialmente, em reconhecer
outros tipos de entidades familiares, os modelos de família atualmente
existentes na sociedade contemporânea vão além dos tipos nela reconhecidos[4].
Nesse sentido, as
relações pessoais, dentro dos novos arranjos familiares não mais obedecem a um
modelo pré-concebido, com papéis previamente definidos. A função exercida por
cada membro passa a caracterizar a nova família, que assim se despe das amarras
institucionais da antiga sacralidade, imposta pela família patriarcal. As novas
entidades surgem não apenas através do casamento, mas, principalmente de uma
união oriunda do afeto, não importando se constituídas de sexos distintos ou do
mesmo sexo, tendo elas filhos ou não. A nova família não mais está ligada
apenas pelo elemento biológico, mas aos vínculos psicológicos do afeto[5].
O reconhecimento das
novas (re)formulações de famílias que não mais seguem o protótipo tradicional,
efetiva o mais elementar dos princípios, o princípio da dignidade da pessoa
humana. Sua essência é difícil de ser capturada em palavras, mas pode ser
identificada como um princípio da manifestação dos valores constitucionais,
carregado de sentimentos e emoções, consagrando a dignidade da pessoa humana
como valor nuclear da ordem constitucional[6].
E é na família que a
dignidade da pessoa vai se fortalecer, especialmente, em cada um dos seus
membros, fundamentando-se na ordem constitucional para tanto.
A
dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para
florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de
sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as
qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a
união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum -, permitindo o
pleno desenvolvimento pessoal e social de cada indivíduo com base em ideias
pluralistas, solidaristas, democráticas e humanistas[7].
Com o reconhecimento do
afeto como valor jurídico e a afetividade como um dos princípios fundamentais
do direito de família, há uma quebra de paradigmas, considerando que a
consanguinidade não é mais o único fator que identifica as relações familiares.
A família-instituição dá lugar a uma família-instrumental, promotora de
bem-estar e realização de seus membros, através da plena comunhão de vida.
O vínculo afetivo surge
como elemento fundamental para formação e reconhecimento de novas modalidades
familiares que merecem ampla tutela por parte do Estado. Deste modo, diz-se que
as relações da consanguinidade perdem espaço, dando lugar para aquelas formadas
pelos laços de afetividade e convivência familiar. [8]
Nesse cenário, o
Direito de Família vai se adaptando às mudanças impostas pelo novo paradigma,
sendo que especialmente o tema filiação passa a ter novos conceitos e
caracterizações.
2.
DA
FILIAÇÃO
O conceito de filiação
sofreu profundas modificações ao longo do tempo[9].
No Brasil, em especial, nas últimas décadas. Desde um conceito puramente
biológico, aliado a (i)legitimidade do filho, a filiação adulterina e a
filiação adotiva, evoluindo-se em seguida para a igualdade de filiação, a
filiação socioafetiva, culminando, nos atuais dias, com o reconhecimento da
multiparentalidade. Registre-se que, se o conceito de filiação sofreu mutações,
consequentemente o conceito de paternidade e maternidade da mesma forma se sujeitou
à imperiosa evolução jurídico-social.
Para que se possa
compreender com melhor clareza a referida evolução, necessário se faz clarear –
ainda que brevemente – os “tortuosos” caminhos pelos quais o conceito de
filiação percorreu, até se estabelecer com a relativa segurança que hoje
desfruta.
2.1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FILIAÇÃO NO “DIREITO
BRASILEIRO”[10]
Ainda sob a égide do
extinto Código Civil de 1916, a doutrina da época, conceituava filiação como
sendo “a relação jurídica provocada pela geração de uma nova vida. É, em outros
termos, o fato natural da procriação juridicamente considerado”[11].
Autores ilustres como Washington Monteiro de Barros[12] e
Silvio Rodrigues[13],
acompanham o aludido conceito com particularidades que lhes são próprias, sem,
contudo, diferir em conteúdo, que, basicamente, centra-se na ideia de que a
relação paterno-materno-filial estrutura-se unicamente no conceito genético[14],
independente de como ocorreu o processo: se de forma natural ou artificial[15].
Aqui não há qual espaço para o afeto.
O revogado Diploma
Civil contemplava quatro espécies de filiação, quais sejam: a filiação
legítima, a ilegítima, a legitimada e a adotiva.
Filho legítimo era
aquele havido na constância do casamento, ou nas hipóteses de presunção de
paternidade[16].
Em sentido diametralmente oposto, filiação ilegítima era aquela fruto de
relações adulterinas ou incestuosas, assim como daquela em que não houve
casamento entre os pais. Esta última admitia o reconhecimento da filiação, ao
passo que no primeiro caso era impossível o reconhecimento (voluntário ou
forçado), sendo a prole impedida de concorrer à sucessão hereditária e aos
alimentos. Por filhos legitimados entendiam-se aqueles que precediam o
casamento dos pais ou eram o resultado deste, e eram, por sua vez, equiparados
aos filhos legítimos. A filiação adotiva, “remédio consolatório dos que não têm
filhos”[17], inicialmente
se limitava ao parentesco, não se extinguindo os direitos e deveres decorrentes
do parentesco biológico, transferindo-se, excepcionalmente, o pátrio poder.
Somente em 1979, com a Lei 6.697, é que os filhos adotados foram equiparados
aos filhos legítimos.
Em 1988, a Constituição
Federal, em seu art. 227, § 6º[18],
“lançou uma pá de cal” sobre as discriminações atinentes à filiação, na feliz
expressão de Cristiano Farias e Nelson Rosenvald[19].
O Texto Magno colocou todos os filhos em “pé de igualdade”, como consectário
lógico do princípio da dignidade humana (art. 1º, inciso III). Portanto, não há
mais espaço no cenário jurídico para quaisquer das discriminações erigidas pelo
Código Civil de 1916, inclusive contra qualquer resquício da (i)legitimidade
dos filhos e do adoção.
A partir de uma leitura
constitucional do Direito Privado e, em especial, do Direito de Família,
passou-se a valorizar a convivência entre pais e filhos, garantindo-se valor
jurídico ao afeto. Não é possível que uma decisão judicial, por mais erudita e
bem fundamentada que seja, desconstitua anos de convivência. Surge então o
conceito de filiação socioafetiva, muito bem apresentado pelos renomados
autores Cristiano Farias e Nelson Rosenvald:
A filiação socioafetiva não está
lastreada no nascimento (fato biológico), mas em ato de vontade, cimentada,
cotidianamente, no tratamento e na publicidade, colocando-se em xeque, a um só
tempo, a verdade biológica e as presunções jurídicas. Socioafetiva é aquela
filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em
mão-dupla como pai e filho, inabalável na certeza de que aquelas pessoas, de
fato, são pai e filho[20].
Logo, reformula-se o
conceito de filiação, agora não mais lastreado única e puramente em critério
genéticos, mas também no critério afetivo, que é forte o suficiente para
estabelecer o vínculo filiatório onde não está presente o vínculo biológico.
Rolf Madaleno, com propriedade, assevera que
O real valor jurídico está na verdade
afetiva e jamais sustentada na ascendência genética, porque essa, quando
desligada do afeto e da convivência, apenas representa um efeito da natureza,
quase sempre fruto de um indesejado acaso, obra de um indesejado descuido e da
pronta rejeição. Não podem ser considerados genitores pessoas que nunca
quiseram exercer as funções de pai e mãe, e sob todos os modos e ações se
desvinculam dos efeitos sociais, morais pessoais e materiais da relação natural
da filiação[21].
Os conceitos de pai e
mãe, por sua vez, passam a ser revistos. Pai não é mais “aquele que empresta
seu nome na certidão de nascimento”, mas sim, “constitui muito mais uma função,
ou mesmo uma metáfora, do que propriamente uma relação biológica”[22],
assim como o papel da mãe, que não se constitui exclusivamente no critério
biológico, mas sim na função exercida e no papel que o gênero feminino
representa[23].
Logo, à luz do novo
Direito das Famílias, pode-se conceituar filiação como sendo a relação jurídica existente entre ascendentes
e descentes, em linha reta de primeiro grau, constituída pelo vínculo
biológico, afetivo ou adotivo, que confere ao descendente determinada carga
hereditária; e, como consectário da filiação, a efetivação dos princípios
constitucionais atinentes à dignidade humana.
Ante a evolução do
conceito de filiação e das novas formas de família, um novo capítulo da
filiação se inicia com o reconhecimento da multiparentalidade, a partir de
decisões judiciais inovadores. Isto é, possibilidade de reconhecimento de
múltiplos pais e mães para determinada pessoa.
3. MULTIPARENTALIDADE E POSSIBILIDADE
JURÍDICA
Com
a evolução do Direito das Famílias, o afeto ganhou valor jurídico. Como já
demonstrado, a filiação é muito mais do que (um simples) registro. É um fato
complexo.
A multiparentalidade é
fenômeno recente na seara familiarista, que confere a possibilidade de
determinada pessoa cumular em seu registro de nascimento, múltiplos pais e
múltiplas mães. A guisa de estudo semântico-jurídico, registro de multimaternidade é a possibilidade
constar mais de uma mãe em uma certidão de nascimento. Multipaternidade, por sua vez, é a possibilidade da cumulação de
mais de um pai registral. Pluripaternidade
seria a possibilidade de cumulação de múltiplos pais e mães no mesmo registro
de nascimentos.
Por mais incomum que
pareça a primeira vista, tal fenômeno ocorre com frequência no cotidiano das
famílias. Casos de famílias recompostas, em que o cônjuge “assume como seu” o
filho do primeiro matrimônio de seu parceiro(a), emergindo dessa relação uma
posse de estado de filho e toda a relação de afeto daí decorrente, pode ser
citado como típico caso de multiparentalidade. A diferença fundamental reside
no sentido de que o termo multiparentalidade é geralmente empregado quando há o
efetivo registro, isto é, quando ganha-se valor jurídico, logo, pode ser melhor
conceituado como multiparentalidade
registral.
Em que pese não existir
previsão legal nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, já
se manifestou a respeito em acórdão paradigmático:
MATERNIDADE
SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe
biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado
como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no
art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de
longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua
manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que
se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua
base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
solidariedade Recurso provido.
(...)
Pelo exposto,
DÁ-SE PROVIMENTO ao recurso para declarar-se a maternidade socioafetiva de
Vivian Medina Guardia em relação a Augusto Bazanelli Guardia, que deve constar
do assento de nascimento, sem prejuízo e concomitantemente com a maternidade
biológica.[24]
Pode-se asseverar que a
multiparentalidade é fenômeno mais recente no campo da filiação, resultado da
evolução e das conquistas históricas do direito de filiação. O reconhecimento
de multiparentalidade estende efeitos jurídicos a uma situação fática
consolidada, possibilitando a cumulação de registros de múltiplos pais ou mães
em determinado registro de nascimento. Emergem questões relevantes que merecem ser
estudas, com o número de genitores que podem constar em um registro de
nascimento. A legislação é omissa, assim como a jurisprudência não teve
oportunidade de manifestar a respeito. Entretanto, pelas decisões já
proferidas, tem-se visto número não superior a três, isto é, ao lado dos
genitores biológicos a presença de um pai/mãe socioafetivo.
Quanto à possibilidade
de mais de três ascendentes diretos na mesma certidão, merece estudo mais
acurado pelos operadores do direito em conjunto outras áreas do conhecimento,
como a psicologia, para se verificar se o indivíduo admite a representação
subjetiva dessas figuras. O operador do direito, em especial os juízes, devem
se instrumentalizar o suficiente para enfrentar os casos concretos, evitando,
com isso, que pedidos com interesses meramente patrimoniais cheguem a ser
chancelados, descaracterizando o instituto.
Necessário se faz,
também, esclarecer que a presente tese de reconhecimento de multiparentalidade
em nada abona a quebra do princípio monogâmico[25],
pelo contrário, reforça-se a unidade familiar, centrada no casal, mas não
impede que, em havendo a ausência de uma das figuras ou mesmo na consolidação
de um (novo) vínculo filial por uma nova união de um dos genitores, exclua-se o
vínculo já consolidado. Exemplifica-se com os casos de famílias recompostas.
3.1 OS
EFEITOS DO RECONHECIMENTO DE MULTIPLOS PAIS E MÃES
Desfrutando-se
hoje da previsão legal (Constitucional e infraconstitucional) da igualdade
entre os filhos, reconhecida a multiparentalidade registral, todos os efeitos
jurídicos daí decorrem: direito a alimentos, guarda, direitos sucessórios, etc.
Estende-se a todos os pais que constarem no registro da criança o poder
familiar.
Situações
curiosas podem ocorrer. Estando os três pais vivos, isto é, reconhecida a
multiparentalidade registral em vida, a criança poderá desfrutar da guarda
compartilhada dos três pais, por exemplo. Havendo conflito quanto a esta, deve
o Poder Judiciário preservar o melhor interesse da criança, bem como garantir
aos pais o direito a visitação, de forma que seja possível o equilíbrio entre
os três.
Inegável,
também, são os efeitos sucessórios decorrentes do reconhecimento, tendo o filho
direito a herança de todos os pais registrais. Importante aqui é considerar o
avanço decorrente da multiparentalidade registral, uma vez que um filho socioafetivo
não reconhecido, em regra, não tem direitos sucessórios, somente o filho
registral.
O nome, direito
personalíssimo subjetivo, acompanha o registro. Quando do reconhecimento jurídico
do vínculo multiparental, a criança herda a ascendência dos pais materializada
no nome civil.
3.2
O RECONHECIMENTO E REGISTRO DE
MULTIPARENTALIDADE
O reconhecimento dos
filhos é ato (voluntário ou forçado) por meio do qual se estabelece a relação
de parentesco em primeiro grau na linha reta[26].
Quando há a necessidade
de reconhecimento forçado da filiação, deve-se instaurar processo judicial de
investigação de paternidade junto à Vara de Família. Nos casos de
multiparentalidade até então reconhecidos pelo Judiciário, a maioria deu-se em
processo nas Varas de Família, onde se investigou o vínculo (biológico ou
socioafetivo) deveria se sobrepor ao já existente no registro de nascimento. Os
casos em que o Poder Judiciário cumula os vínculos biológicos e socioafetivo é
consectário lógico da dignidade humana e da proteção integral à família.
No tocante ao
reconhecimento voluntário (após o nascimento), disciplina o art. 1.607[27],
do Código Civil, que o reconhecimento pode se dar por ato dos pais (conjunta ou
separadamente), ou ainda, nas hipóteses do art. 1.609[28],
do mesmo Diploma. Em sendo voluntário, instaurar-se-á procedimento de
jurisdição voluntária, junto à Vara de Registros Públicos[29],
uma vez que todos os interessados estão de acordo, isto é, não há litígio.
Note-se que não há discussão quanto ao vínculo (biológico ou afetivo),
busca-se, tão somente, o registro da condição de pai/mãe no registro de
nascimento.
Tal procedimento
amolda-se perfeitamente aos casos de multiparentalidade em que seja voluntário
o reconhecimento. Deve-se, portanto, ajuizar a respectiva demanda na Vara de
Registros Públicos.
Em decisão inédita[30]-[31],
a Vara de Registros Públicos da Comarca de Santa Maria/RS, que funciona junto à
Direção do Foro, reconheceu o primeiro registro de nascimento de multimaternidade,
em conjunto com a paternidade biológica.
Trata-se de um caso em
que um casal homoafetivo formado por duas mulheres, sendo que uma delas
voluntariamente engravidou, pleiteava o reconhecimento da dupla maternidade, em
conjunto com a paternidade biológica. Em sensibilíssima decisão, o MM. Juiz
Rafael P. Cunha reconheceu a procedência do pedido.
O ineditismo da decisão
refere-se que a criança, desde o primeiro registro já possui duas mães[32].
A tese trabalhada na inicial foi que, em a “mãe socioafetiva”, desde o início
da gestação, possui uma “posse de estado de mãe” em relação à criança. Quanto a
esta, desde cedo crescerá com “posse de estado de filho” em relação à mãe
socioafetiva. No tocante à posição do genitor, indiscutível seu direito de
constar no registro de nascimento da criança. Logo, a criança terá duas mães,
um pai e seis avós.
Tal decisão não só
reforça a tese de multiparentalidade, como também o múltiplo reconhecimento por
casais homoafetivos, representando, portanto, significativo avanço para o
Direito das Famílias[33].
Desta forma, a multiparentalidade
registral vem a efetivar os princípios da dignidade da pessoa humana e da
afetividade, uma vez que reconhece o fenômeno social da filiação já existente –
embasada no amor, no afeto, na atenção – como fenômeno normativo.
Importante considerar
que há distinção entre a adoção unilateral, uma vez que não há a substituição
dos pais biológicos, apenas o acréscimo no registro de nascimento do pai ou mãe
socioafetivo, garantindo-se a este(a), por conseguinte, todos os efeitos
decorrentes da paternidade/maternidade.
Logo, conclui-se que a
multiparentalidade como fenômeno recente no Direito de Família, vem a possibilitar
que determinada pessoa cumule em seu registro de nascimento mais de dois
vínculos paternos. As decisões, apesar de escassas, representam significativo
avanço, pois vem a efetivar os direitos dos sujeitos envolvidos. Em um país com
milhares de crianças e jovens na fila de adoção, aquele que pode ter mais de
dois pais é realmente um sortudo.
[1] Professora Titular do Centro
Universitário Franciscano. Advogada especializada em Direito de Família e
Sucessões. Mestre em Direito Público pela UNISC.
.
[2] Advogada. Graduada em Direito
pelo Centro Universitário Franciscano. Pós-graduanda pela Faculdade Damásio em
Direito de Família e Sucessões. .
[3] Advogado. Graduado em Direito
pelo Centro Universitário Franciscano. .
[4] Segundo Carlos Alberto Dabus
Maluf, diversas são as formas de família existentes na sociedade atual, os
arranjos familiares obedecem a uma enorme diversificação, quais sejam: família
matrimonial, família formada na união estável, monoparental, unilinear,
homoafetiva, famílias recompostas, mosaico, pluriparental, anaparental,
eudemonista, paralela. Todas elas primando pela proteção do ser humano, tendo
em vista o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo calcadas
principalmente na afetividade (MALUF; Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus;
MALUF, Carlos Alberto Dabus. Curso de
direito de família. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 38).
[5] Rolf Madaleno,
citando o magistério de Sérgio de Barros Resende, afirma que “O afeto é o que conjuga. Apesar da ideologia
da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é
requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai e
mãe. Há famílias só de homens e só de mulheres, como também sem pai ou mãe.
Ideologicamente, a atual Constituição brasileira, mesmo superando o patriarcalismo,
ainda exige o parentalismo: o biparentalismo ou o monoparentalismo. Porém, no
mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal- tão forte e
estreito, tão nítido e persistente- que hoje independe do sexo e até das
relações sexuais, ainda que na origem histórica não tenha sido assim. Ao mundo
atual, tão absurdo é negar que, mortos os pais, continua existindo entre os
irmãos o afeto que define a família, quão absurdo seria exigir a prática de
relações sexuais como condição sine qua non para existir a família. Portanto, é preciso corrigir ou, dizendo com
eufemismo, atualizar o texto da Constituição brasileira vigente, começando por
excluir do conceito de entidade familiar o parentalismo: a exigência de existir
um dos pais” (MADALENO, Rolf. Curso
de direito de famílias. Rio de Janeiro: Forense, 2011, pag. 6).
[6] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed.
rev., atual., e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pag. 65.
[7] Idem. p. 65.
[8] Maria Berenice Dias assevera que
“hoje, temos por bem, dar valor ao sentimento, a afeição, ao amor da verdadeira
paternidade, não sobrepujar a origem biológica do filho e desmistificar a
supremacia da consanguinidade, visto que a família afetiva foi constitucionalmente
reconhecida e não há motivos para os 23 operários do direito que se rotulam
como biologistas e se oporem resistência à filiação sociológica. Essa é a
realidade” (DIAS, Maria Berenice. Manual
de direito das famílias. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2013, pag. 31).
[9] Nessa perspectiva histórica,
importante é a colaboração de Jorge Shiguemitsu Fujita que refere que em Roma,
até o século III d.C. ao paterfamilias
era conferido o direito de vida e morte sobre os filhos. Já no período da Idade
Média os filhos eram incentivados à obtenção de um ofício, nas classes mais
baixas; e, nas mais elevadas, ao aprendizado de idiomas, bons modos e dos
esportes ligados à cavalaria. A idade moderna é caracterizada pela escolarização,
fundada em especialização mais especializada e teórica, antes designada apenas
aos religiosos. O autor conclui o capítulo asseverando que a pós-modernidade
traz a marca da maior sensibilidade e afetividade na relação
paterno-materno-filial (FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. São Paulo: Atlas, 2009. p. 11-16).
[10] Preferiu-se a expressão “direito
brasileiro” haja vista que adotar o critério puramente legislativo seria
desconsiderar a imensa contribuição doutrinária e jurisprudencial para a
consolidação do referido conceito.
[11] DAYRELL,
Carlos. Da filiação ilegítima no Direito
Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 9.
[12] Para Washington de Barros
Monteiro, “o vocábulo filiação exprime a relação existente entre os filhos e as
pessoas que o geraram” (MONTEIRO, Washigton de Barros. Curso de Direito Civil: Direito de Família. 20. ed. rev. e atual.
São Paulo: Saraiva, 1982. p. 237).
[13] Silvio Rodrigues conceitua
filiação como “a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em
linha reta, que liga uma pessoa aqueles que o geraram” (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito de Família. 10.
ed. rev. e atual. v. 6. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 287).
[14] No ano de 1983, em monografia
dedica ao tema, o professor catedrático da Universidade Federal de Goiás,
Carlos Dayrell., afirmava, com certo espanto, a conquista da fecundação in vitro. Cita o autor o primeiro “bebê
de proveta”, nascido em Oldham, Inglaterra, em 25 de julho de 1983, sendo
seguido por um segundo nascimento em Calcutá, Índia, em 3 de outubro de 1978 e
um terceiro nascimento em 15 de janeiro de 1979, em Glasgow, Escócia (DAYRELL,
Carlos. Ob. Cit. p. 3-5).
[15] “A possibilidade de fecundação
por meio de inseminação artificial (...) não muda o aspecto da questão
inicialmente focalizada, pois haverá sempre um vínculo a unir intimamente o ser
humano àqueles que o geraram, pouco importando – repete-se – que sua concepção
tenha sido conseguida normalmente ou por processo desnatural, através de
inseminação artificial, ou mesmo fora do ventre materno (Idem. p. 6)”.
Reitera-se no trecho em destaque a preocupação exclusivamente genética.
[16] À luz do Código Civil de 1916,
presume-se filho aquele nascido até 300 (trezentos) dias subsequentes à
dissolução da sociedade conjugal, assim como os filhos nascidos 180 (cento e
oitenta) dias, pelo menos, após o estabelecimento da sociedade conjugal.
[17] DAYRELL, Carlos. Ob. Cit. p. 17.
[18] Em 2002, o atual Código Civil,
em seu artigo 1.596, repetiu integralmente o parágrafo 6º, do art. 227, da
Constituição Federal de 1988, suplantando qualquer resquício de discriminação
na seara privada.
[19] FARIAS,
Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: Famílias.
4. ed. rev., ampl., e atual. v. 6. Salvador: JusPODIVM, 2012. p. 614.
[20] Idem. p. 670.
[21] MADALENO, Rolf. Ob. Cit. p. 488.
[22] PEREIRA,
Rodrigo da Cunha. Direito de Família:
Uma abordagem psicanalítica. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003. p. 116-127.
[23] Para mais, importante a leitura
da obra Direito de Família: Uma
abordagem psicanalítica, do Magistério de Rodrigo da Cunha Pereira, Capítulo 6:
“A parte da mulher e a mãe” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: Uma abordagem psicanalítica. 3. ed. rev.,
atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 99-112).
[24] SÃO PAULO.
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação
nº 00642-26.201.8.26.0286. 1ª Câmara
de Direito Privado. Vivian Medina Guardia; Augusto Bazanelli, Juízo da Comarca
de Itú. Relator Desembargador Alcides Leopoldo e Silva
Júnior. São Paulo. 14 ago. 2012. Disponível em: . Acesso
em: 18 set. 2014.
[25] Para Rodrigo da Cunha Pereira, “o princípio da monogamia, embora funcione
também como um ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e
conjugais, não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência
nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico
ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da
família e do mundo ocidental. Se fosse mera regra moral teríamos que admitir a
imoralidade dos ordenamentos jurídicos do Oriente Médio, onde vários Estados
não adotam a monogamia” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais
Norteadores do Direito de Família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 127).
[26] FARIAS, Cristiano Chaves de;
ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: Famílias. 4. ed. rev., ampl.,
e atual. v. 6. Salvador: JusPODIVM, 2012. p. 679.
[27] “Art. 1.607. O filho havido fora
do casamento pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente”.
[28] “Art. 1.609. O reconhecimento
dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I - no
registro do nascimento; II - por escritura pública ou escrito particular, a ser
arquivado em cartório; III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;
IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o
reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.
Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser
posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes”.
[29] Esse também é o magistério de
Belmiro Pedro Welter, que leciona no sentido de que “quando se tratar de ação judicial de
investigação de paternidade, na qual são requeridas a citação do suposto pai e
a produção de todas as provas admitidas em Direito, ocorrendo o reconhecimento
forçado da filiação, a competência para o julgamento da ação é da Vara de
Família. Agora, na primeira fase, conhecida como procedimento administrativo da
averiguação oficiosa da paternidade, não há processo contenciosos, mas simples
tentativa de reconhecimento voluntário da paternidade. O suposto pai não
sofrerá nenhum prejuízo caso se negue a reconhecer a paternidade ou mesmo
quando não comparecer a audiência, isso porque tudo é feito na esfera administrativa.
É por isso que a competência da averiguação da paternidade não é da Vara de
Família, e sim da Vara de Direção do Foro ou da Vara de Registros Públicos,
onde houver, pois não se estará promovendo a audiência de tentativa de
conciliação na pendência da ação de investigação de paternidade, e sim
audiência em procedimento em que não há lide” (WELTER. Belmiro Pedro. Igualdade entre as Filiações Biológica e
Socioafetiva. São Paulo: RT, 2003. p. 71).
[30] Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul. Processo nº 027/1.14.0013023-9.
[31] Os Autores do presente artigo
atuaram no processo supracitado, advogando à tese de multiparentalidade
registral.
[32] Todas as decisões pretéritas
trabalham com o registro posterior, isto é, após o nascimento, onde se investiga
a existência de filiação socioafetiva.
[33] Paulo Lôbo, citando o pensamento
de Maria Berenice Dias, leciona que: “A impossibilidade de filiação por casais
homossexuais não retira o status quo
de família, uma vez que a família sem filhos é família tutelada
constitucionalmente e a procriação não é sua finalidade. Ademais, não há
impedimentos constitucionais para que duas pessoas do mesmo sexo venham a
adotar uma criança. A adoção é permitida a qualquer pessoa, independentemente
do estado civil (art. 42 do ECA e 1.618 do Código Civil) não impede que a
criança se integre à família, ainda que o parentesco civil seja apenas com um
dos parceiros” (LÔBO, Paulo Luiz Neto. Direito
civil: Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 91).
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