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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Ética Jurídica - Fertilização in Vitro e Registro de Nascimento

 




autora: Maria Aglaé Tedesco Vilardo
Fonte:http://bioeticaebiodireito.blogspot.com.br/2012/10/etica-juridica-e-decisao-judicial.html
O problema ético na aplicação do Direito possui um horizonte prático relevante. A identificação deste horizonte deve ser feita em contraste com o horizonte teórico.

A filosofia busca constituir situação que permita contemplar a verdade na sua dimensão prática tendo em vista que o ser humano é um ser movido pelo desejo e tem por objetivo a felicidade.

Aristóteles, pai da ética, afirma que “o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade” e que a moderação das paixões é o caminho da felicidade. Para o filósofo, a Lei deve ser capaz de compreender as limitações do ser humano, suas paixões e instintos, e produzir instituições que promovam o bem e reprimam o mal. A lei não deve moldar o real, mas o contrário, a realidade deve moldar a lei, assim, ela será passível de cumprimento.

A essência da virtude se encontra na moderação entre os extremos de cada paixão, o caminho do meio. Para ele o conhecimento é dividido entre o conhecimento prático e teórico, o primeiro sendo o conhecimento de como agir corretamente e o segundo o conhecimento do que é bom por si mesmo.

Estabelece como fonte da ética a noção de que a Felicidade (eudaimonia) é recompensa dos virtuosos. Aristóteles propõe uma sociedade na qual as instituições tentam harmonizar estes sentimentos básicos dos seres humanos de forma a produzir o melhor resultado possível para que o bem individual e o bem coletivo sejam harmônicos. Busca uma Ética do Possível, que não desrespeite a paixões humanas, mas antes as oriente pelo caminho da ponderação até a maturidade racional do equilíbrio.

Com base na teoria ética de Aristóteles destacamos o caso que segue para breve exame.

PARECER Nº 82/2010_E_ PROCESSO Nº 2009/104323- Procedimento Administrativo – Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo
REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS _ Assento de nascimento _ Filha gerada mediante fertilização in vitro e posterior inseminação artificial, com implantação do embrião em mulher distinta daquela que forneceu o material genético _ Pretensão de reconhecimento da paternidade pelos fornecedores dos materiais genéticos (óvulo e espermatozóide) _ Cedente do óvulo impossibilitada de gestar, em razão de alterações anatômicas _ “Cedente do útero”, por sua vez, que o fez com a exclusiva finalidade de permitir o desenvolvimento do embrião e o posterior nascimento da criança, sem intenção de assumir a maternidade _ Confirmação, pelo médico responsável, da origem dos materiais genéticos e, portanto, da paternidade biológica em favor dos recorridos _ Indicação da presença dos requisitos previstos na Resolução nº1.358/1992 do Conselho Federal de Medicina, em razão das declarações apresentadas pelos interessados antes da fertilização e inseminação artificiais _ Assento de nascimento já lavrado, por determinação do MM. Juiz Corregedor Permanente, com consignação da paternidade reconhecida em favor dos genitores biológicos _ Recurso não provido.


O Ministério Público do Estado de São Paulo interpôs recurso contra a decisão do Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de Barão Geraldo, da Comarca de Campinas, que afastou a recusa de lavratura de assento de nascimento de criança com imputação da paternidade aos fornecedores de materiais genéticos utilizados para fertilização in vitro e inseminação artificial em mulher que, sem ser a produtora do óvulo, autorizou a prática do ato com a exclusiva finalidade de permitir o desenvolvimento do embrião e o seu futuro nascimento.

A alegação fundamentou-se no fato de que a maternidade é presumida pela gestação e que o contrato entre as partes não supera este princípio e que devem prevalecer os interesses da criança, o que ocorrerá com a lavratura de assento de nascimento que retrate a estrita veracidade quanto à paternidade e maternidade, de forma a assegurar a preservação da dignidade humana.

O Ministério Público considera que a lavratura do assento de nascimento na forma pretendida não possibilitará o futuro conhecimento, pela criança, de sua real origem, porque ocultará a verdadeira maternidade. Além disso, não existe regulamentação legal para a prática pretendida pelos recorridos, o que impõe maiores cautelas e impede, por sua vez, a presunção de paternidade e maternidade tão só pelas declarações apresentadas pelos interessados, nas quais se inclui a do médico responsável pela fertilização e pela inseminação. Tece comentários sobre a possibilidade de manipulação genética vedada ou ilegal. Afirma, por fim, que a genitora que deu à luz não tem parentesco com os supostos pais biológicos, o que contraria resolução do Conselho Federal de Medicina destinada a impedir a comercialização do útero. Requer o provimento do recurso para que seja determinada a lavratura do assento de nascimento em nome da mulher indicada como genitora na Declaração de Nascido Vivo, com remessa dos interessados às vias ordinárias para a solução de eventual litígio relativo à paternidade e maternidade.

O Juiz Auxiliar da Corregedoria da Comarca da Capital de São Paulo, Dr. José Marcelo Tossi Silva, em 19/3/2010 emitiu parecer no sentido de se manter o registro em nome dos pais doadores dos gametas. Fundamentou seu parecer afirmando que diante da inexistência de legislação específica deveria ser observado que o Conselho Federal de Medicina, no campo da ética, regulamentou a conduta de seus membros, na denominada “gestação de substituição”, por meio da Resolução nº 1.358/92.

Acrescentou que a solicitação de registro foi instruída com “Declaração de Nascido Vivo” do hospital onde a criança nasceu, além dos documentos: “Termo de Consentimento para Substituição Temporária de Útero” constando os “Pais Genéticos”, ou seja, fornecedores do óvulo e do espermatozóide, e “Doadores do Útero” ; “Termo de Consentimento Pós Informado para FIV/ICSI”; “Termo de Consentimento Pós-Informado para Criopreservação de Pré-Embriões/Embriões após Fertilização In Vitro”; declaração prestada pelo médico confirmando a origem dos materiais genéticos que resultaram na fertilização e inseminação artificiais; declaração da gestante no sentido de que foi submetida a inseminação artificial de embrião fertilizado com uso de materiais genéticos alheios e de que não tem pretensão de assumir a maternidade da criança assim gerada.

Diante da ausência de regulamentação legislativa, a solução para as situações concretas, ocorridas a fertilização in vitro e a posterior inseminação artificial em “cedente de útero”, ou “mãe-de-substituição”, deve prevalecer o melhor interesse da criança desse modo concebida e nascida, o que, neste caso concreto, corresponde à lavratura do assento de nascimento com base na verdade biológica da filiação.

Os documentos são concludentes no sentido de que a concepção e paternidade sempre foi desejada pelos pais biológicos, doadores dos materiais genéticos utilizados na fertilização in vitro, prestando-se a cedente do útero a servir para a gestação e parto, sem qualquer intenção de assumir a maternidade da criança. Assim, declarou por escrito.

Evidente que a lavratura do registro em desconformidade com a verdade biológica será prejudicial à criança que nenhum sustento e educação receberia da gestante.

O parecer foi aprovado pelo Corregedor Geral da Justiça, Des. Antonio Carlos Munhoz Soares, em 26/3/2010.

Ao analisarmos o caso sob o enfoque da ética de Aristóteles destacamos que os doadores dos gametas, movidos pelo desejo da paternidade/maternidade (“o ser humano é um ser movido pelo desejo”) e impossibilitados de realizá-lo naturalmente, tiveram que realizar a fertilização em vitro com a ajuda de outra mulher que pudesse gestar em seu útero um embrião oriundo do óvulo e espermatozóide do casal.

O objetivo do casal era a felicidade em serem pais e os avanços biotecnológicos permitiam alcançar tal felicidade. Como Aristóteles preconizou “ A lei não deve moldar o real, mas o contrário, a realidade deve moldar a lei, assim, ela será passível de cumprimento”. Assim, o casal, diante da real possibilidade da gestação de substituição, criou situação não prevista especificamente em lei. Todavia, houve a preocupação dos médicos em regulamentar eticamente a gestação de substituição através da resolução mencionada que criou alguns parâmetros básicos para que ocorresse. Claro que são caminhos a seguir, porém não há determinação de que não possam ser relativizados como foi no caso mencionado, ante a ausência de parentesco da gestante com os doadores ( “A essência da virtude se encontra na moderação entre os extremos de cada paixão, o caminho do meio”).

Os avanços biotecnológicos permitem a realização deste desejo, a felicidade pode ser alcançada através da ciência. O registro civil em nome dos pais doadores pode ser realizado sem exame de DNA ou processo de investigação de paternidade, pois “propõe uma sociedade na qual as instituições tentam harmonizar estes sentimentos básicos dos seres humanos de forma a produzir o melhor resultado possível para que o bem individual e o bem coletivo sejam harmônicos”. Não se verifica a geração de instabilidade na sociedade ao se autorizar que os doadores, munidos de atestados e declarações da veracidade dos fatos, registrem diretamente seu filho, pois além do próprio bebê ter o direito ao seu registro civil em nome dos pais doadores, em razão do seu melhor interesse (ser criado por aqueles que lhe desejavam intensamente), há permissão social para tal concepção, inclusive regulamentada por resolução médica.

O direito ao registro é consectário lógico da cidadania. Exigir-se processo judicial e exame de DNA e vedando-se o imediato registro, coloca-se em questão a realização de atividade médica de fertilização trazendo constrangimento aos contratantes – tanto à gestante, quanto aos doadores (“as paixões humanas devem ser orientadas pelo caminho da ponderação até a maturidade racional do equilíbrio”).

Desta forma, conclui-se que ao indicar o caminho do meio encontrou-se a maturidade racional do equilíbrio. A possibilidade científica que permite às pessoas terem acesso a conquistas ainda não regulamentadas por lei deve ser amparada em sentido amplo com a concessão de todos os direitos civis decorrentes daquele ato. O planejamento familiar é fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, conforme art. 226, § 7º da Constituição Federal, cabendo ao Estado propiciar os recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito. Complementar a essa obrigação do Estado, encontra-se o direito a tornar público, através do registro imediato, o nascimento da criança ocorrido em razão de progresso científico.

Partilha de bens na união estável

Partilha de bens na dissolução de união estável após a Lei 9.278 dispensa prova de esforço comum
A partir da vigência da Lei 9.278/96, os bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável, individualmente ou em nome do casal, pertencem a ambos, dispensada a prova de que sua aquisição decorreu do esforço comum dos companheiros. Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não acolheu o recurso de ex-companheira, que pretendia ver partilhados somente os bens adquiridos em nome de ambos e não todos os bens acrescentados ao patrimônio durante a constância da união.

A mulher ajuizou a ação de dissolução de sociedade de fato contra o ex-companheiro, com quem manteve união estável de 1986 a 1997. Ele não apresentou contestação e foi decretada sua revelia. Somente em alegações finais, sustentou cerceamento de defesa e pediu o reconhecimento de seu direito à meação de todos os bens que teriam sido adquiridos na constância da união estável.

O juízo de primeiro grau decretou o fim da união estável com a partilha de todos os bens adquiridos durante a vigência da união estável, com base na Lei 9.278. Interposta apelação pela mulher, o Tribunal de Justiça de Pernambuco manteve a sentença. “Separação ocorrida após a vigência da Lei 9.278, devendo ser partilhados os bens pelos companheiros. Sentença que merece subsistir”, decidiu o TJ.

Fora do pedido

No recurso especial ao STJ, a mulher afirmou que as instâncias ordinárias não poderiam ter determinado a partilha de todos os bens adquiridos durante a união, pois essa decisão teria extrapolado o pedido feito na ação, que se limitava à dissolução da sociedade com partilha dos bens adquiridos exclusivamente em nome de ambos.


“Se o recorrido [ex-companheiro] pretendesse a partilha dos demais bens de propriedade da recorrente [ex-companheira], deveria ter contestado. Como não o fez, só lhe restaria então entrar com ação própria, com pedido específico de partilha dos bens que não foram colacionados, uma vez que não foram objeto da presente ação”, disse a defesa da mulher.

A ex-companheira alegou ainda que o ato jurídico cuja dissolução se buscou por meio da ação – a constituição da sociedade de fato – se deu em 24 de dezembro de 1986, e que a legislação aplicável deveria ser aquela vigente à época.

Em seu voto, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que às uniões estáveis dissolvidas após a publicação da Lei 9.278, ocorrida em 13 de maio de 1996, aplicam-se as suas disposições, conforme já pacificado pelo STJ. No caso, a dissolução ocorreu em março de 1997.

“Os bens adquiridos a título oneroso enquanto perdurar a união estável, individualmente ou em nome do casal, a partir da vigência da Lei 9.278, pertencem a ambos, excepcionado o direito de disporem de modo diverso em contrato escrito, ou se a aquisição ocorrer com o produto de bens adquiridos em período anterior ao início da união”, afirmou o ministro.

Consequência natural

Sobre a alegação de que a decisão contestada teria extrapolado os limites da ação, o ministro assinalou que a meação é consequência natural do pedido de dissolução da união estável, motivo pelo qual o julgador não fica adstrito ao pedido de partilha dos bens relacionados na petição inicial da demanda.

Segundo o relator, mesmo havendo a revelia da outra parte, a autora da ação não demonstrou a ocorrência das hipóteses legais que poderiam afastar a presunção de condomínio sobre o patrimônio adquirido exclusivamente em seu nome. Com base em precedentes do STJ, o ministro disse que a Lei 9.278, ao contrário do regime legal anterior, “não exige prova de que a aquisição dos bens decorreu do esforço comum de ambos os companheiros para fins de partilha”.


 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

SANTA MARIA, A CAPITAL DO BRASIL- por Fabricio Cunha


 A CIDADE
 “Eu perdi um amigo de 22 anos. Ele estava...”
 Foi assim que fomos recebidos em Santa Maria. Depois de recebermos os primeiros cumprimentos, eu, o Pr. Gérson Garros e o músico Thiago Garros, nos sentamos à mesa de jantar e já começamos a ouvir as histórias que contornam a tragédia da madrugada de 27 de janeiro.
 Todos têm algo pra contar e querem contar, como se isso lavasse a sua alma e a da linda cidade.
 Santa Maria é uma cidade com pouco mais de 300 mil habitantes. É o quarto município mais importante do estado do Rio Grande do Sul e abriga uma das maiores universidades federais do Brasil. Por isso sua população é formada por muitos jovens de várias regiões do estado. A população jovem faz da cidade um lugar muito vivo e bonito, cheio de gente pelas ruas e com uma noite bem movimentada.

 CLIMA
 Mas a realidade que encontramos desde a entrada da cidade, era a expressão do que veríamos nesses dias aqui.
 Um banner com os dizeres “paz aos que partiram cedo demais e força para recomeçar a todos que ficam” está fincado bem na entrada da cidade. Outros vão se estendendo ao longo da avenida. Muitos contendo uma só palavra: LUTO.
 No jantar da sexta, estávamos todos tranquilos numa pizzaria. O assunto, claro, era o acontecimento da semana. De repente a luz acaba. Isso seria algo totalmente normal, se não estivéssemos em Santa Maria. Algumas pessoas se levantaram e todos fizeram um breve silêncio como quem suspira de tensão. Logo tudo passou e a noite continuou. O que não mudou na mesa foi o assunto.
 Uma das maiores tragédias ocorridas em nosso país é também o único tema discutido na cidade. E não tinha como ser diferente. Há policiais em um ponto de Santa Maria para evitar suicídios. Todos conhecem alguém que se foi e falar no assunto é, de alguma forma, manter vivo quem já partiu e cultivar acesa a chama que os sustenta nesses dias: a sede de justiça.

 HISTÓRIAS QUE PINTAM “A HISTÓRIA”
 Fizemos várias visitas. Duas delas, muito marcantes.
 Crisley era uma menina de 24 anos, casada há quatro, filha mais velha de Nara, irmã de outras três meninas, uma delas, uma criança “especial”. Ter cuidado da irmã com uma síndrome mental, sensibilizou o coração de Crisley, que era voluntária numa creche para crianças especiais. Nessa creche, ela conheceu e adotou Maria Francisca, uma linda menina com Síndrome de Down. Há quatro meses, Crisley separou-se do marido e foi para a casa da mãe. No último final de semana, depois de ficar “escondida”, lamentando a separação nos últimos meses, decidiu sair. Suas últimas palavras foram: “mãe, preciso voltar a sorrir. Chego amanhã para irmos na piscina na casa da tia.” Nunca mais voltou, nem voltará.
 Na sala da casa de Nara, ouvimos a história em silêncio reverente. Todos emocionados. O Pr. Gérson disse algumas palavras de consolo, orei e partimos para continuarmos nossa jornada.
 Tivemos o privilégio de visitar todos os leitos da UTI do Hospital da Caridade. Tristeza e alegria se misturam num cenário de desolação e de luta pela vida. Visitamos cada leito, orando rapidamente e ouvindo os que conseguiam e queriam falar alguma coisa. Antes de orar, perguntávamos sobre pelo que queriam que orássemos. Quase nenhum pediu por si. Mesmo muito debilitados, pediam preocupados por seus pais e irmãos e pesarosos pelas almas dos que haviam partido. Conheci Renan, um jovem de 25 anos. Perguntei se poderia orar por ele. Disse que sim. Perguntei se tinha algum pedido e ele, quase sem conseguir falar, pediu pela “alma” do irmão que havia falecido no incêndio. Orei ali com ele, mas só lá fora eu entendi o tamanho de sua angústia. Conheci Rose e Edson, pais de Renan e do jovem Cássio, 20 anos, morto na tragédia. Cássio não queria ir à boate e o irmão insistiu. A mãe disse o quanto eram ligados, que faziam tudo juntos e passavam horas tomando mate em frente à casa onde moravam em Alegrete. No meio da conversa, tira a camiseta com a foto do filho mais novo e alguns dizeres de saudade. Na hora, penso em meu irmão. Temos a mesma diferença de idade. Choramos todos juntos.

 O QUARTEIRÃO
 Visitei várias vezes a rua onde fica a boate Kiss. É uma ladeira apertada, com algumas casas e comércios, que se transformou num grande mausoléu. Fotos, banners, cartazes, flores e velas enchem a fachada da boate, enegrecida pelo fogo e pela tragédia. Em todas as vezes que estive lá, havia gente orando, rezando, olhando em silêncio ou comentando em tom comedido sobre o ocorrido.
 Impressionei-me com o tanto de caminhões de mudança retirando coisas dos prédios vizinhos à boate. Ninguém quer permanecer ali. O lugar está marcado pela morte.
 Parei por muito tempo ali em frente, imaginando o desespero, vendo os jovens ajudando, os bombeiros chegando, as sirenes gritando, o horror de espalhando, os corpos tombando. Sentei.
 Pedi aos policiais que me deixassem passar pelo cordão de isolamento, para olhar lá dentro e ver as fotos mais de perto. Eles deixaram.
 Não consigo descrever o que vi.

 VIGÍLIA
 Na noite do sábado, aconteceu uma missa em memória das vítimas. Nesse dia, juntou-se à equipe o meu amigo, Pr. Rogério Quadra.
 Reuniram-se cerca de 20 mil pessoas na Basílica de Nossa Senhora Medianeira. De lá, muitos caminharam até o local do ocorrido.
 Chegamos lá e uma multidão já se aglomerava em frente à boate. O que impressionou foi a quantidade de gente num silêncio que ninguém tinha coragem de transgredir.
 Exatamente às 2h30, hora em que o incêndio começou havia uma semana, oraram o Pai Nosso juntos. Quando a oração acabou, aqui e ali, pais e amigos gritaram o nome de seus jovens, seguindo com palavras de saudade. O choro infringiu o silêncio. Alguns passaram mal e foram levados por ambulâncias que estavam no local prevendo o que aconteceria.
 Foi a noite mais inesquecivelmente triste de minha vida.
 O que dirá a daqueles pais, mães, irmãos e amigos que choravam a perda de seus jovens queridos...
 Muitos estavam com camisetas com o rosto de seus jovens e dizeres estampados. Atrás de cada foto, um futuro tragicamente interrompido.
 Atrás de cada foto, um família que geme de dor uma perda irreparável.

 ESPERANÇA
 Diferente de catástrofes naturais, onde se perdem as coisas além das pessoas, aumentando o luto pela necessidade do básico, Santa Maria não precisa de roupas, remédios ou alimentos. Mas o que a cidade precisa é ainda mais caro, sagrado e difícil, dado o momento que vivem. Santa Maria precisa de ESPERANÇA.
 Cheguei a escrever no twitter: “não há esperança em Santa Maria, mas há esperança para Santa Maria”. Discordo. Há esperança para Santa Maria, mas também há esperança EM Santa Maria.
 Estávamos no hospital, visitando os jovens na UTI e conversando com familiares, quando um carregamento de remédios essenciais para a recuperação das vítimas chegou do Canadá. Recebemos a boa notícia com todos. Aplaudimos, choramos e celebramos juntos essa pequena boa nova.
 No hospital e por toda cidade, jovens se espalham oferecendo água, pequenos kits de lanche e atendimento médico ou psicológico.
 Quem não perdeu alguém, procura por quem perdeu para oferecer algum consolo.
 Há cartazes oferecendo hospedagem para quem tem algum filho internado na cidade poder comer, dormir ou tomar um banho.
 O poder do amor insiste em tentar desesperadamente cobrir a cidade de cuidado e minimizar o cinza que coloriu seus últimos dias.
 Eu, por minha vez, acredito que onde o “mal abundou, o bem pode transbordar”. Nada é mais poderoso do que o coração de gente que, enquanto chora, debruça-se para servir àquele que sofre. Nada é mais forte do que corações, mesmo quebrados, determinados a converter o mal em algum bem.
 Apesar de toda tristeza que trago comigo, venho pra cá, para os meus, cheio de esperança.
 Morri em Santa Maria, mas em Santa Maria, ressuscitei.
 Santa Maria chora, mas Santa Maria vive.
 Fabricio Cunha®
 De Santa Maria
 Via ONG Novo Jeito

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

A dor que um psicanalista não entendeu - de Márcia Beneti

 

Li, no blog de um psicanalista, que as manifestações de dor nas redes sociais, em virtude do incêndio na boate Kiss, eram uma hipocrisia, pois “precisamos fingir que nos importamos”. A mim, parece que este psicanalista entende pouco de seres humanos, pouquíssimo de redes sociais e quase nada de Santa Maria.

Não perdi ninguém próximo e mesmo assim fui atirada em uma tristeza concreta, que durou dias. Uma amiga descreveu o que sentia como “um cansaço crônico”. Com voz baixa, doída, meu pai se disse “devastado”. Longe ou perto, vivemos dias de insônia e de lágrimas. Dias de impotência, fragilidade, incredulidade, silêncio. Dias de chorar pela dor do outro, imaginando-se no lugar do outro, sentindo pelo outro, sentindo com o outro. Com os pais, os irmãos, os amigos, os professores. Uma tristeza funda, que nada tinha de artificial. Aquela tristeza que mostra, cruamente, a desimportância de todas as coisas. Por que, afinal, doeu verdadeiramente em tantas pessoas?

É porque ali, talvez alguns se lembrem, ali não era uma boate. Ali era a distribuidora da Brahma. A distribuidora do Ives Roth, que para mim era “o pai do Cabeto”. Na frente dali, não era o Carrefour. Era o colégio Hugo Taylor, a antiga Escola de Artes e Ofícios, de propriedade da cooperativa dos ferroviários.

Na esquina da Niederauer com a Floriano não havia uma agência bancária. Era a entrada do colégio Santa Maria. E na esquina da Floriano com a Presidente Vargas não havia uma farmácia. Era o bar Em Cena. A cidade vai mudando por fora, mas, de um jeito estranho e emaranhado, fica sempre a mesma dentro da gente.

A Santa Maria da Boca do Monte que eu guardo tem o cheiro do pão quentinho da padaria Holterman. Tem a marcação do sino do colégio Centenário. Tem as cores do sorvete do seu João e a textura da massa folhada da Copacabana. Esta Santa Maria se fez nas casas compridas da Vila Belga. Se fez no cine Independência, no Glória e no Glorinha. Nos bailes de carnaval do Caixeiral e do Tênis. Nas tertúlias, nas festas no Comercial e no Minuano, no Socepe e no Pinhal.

Na minha memória vivem a galeria do Comércio, a ponte do Itararé, o prêmio Felipe de Oliveira, a procissão da Medianeira. Vivem os trens no final da Rio Branco e a aventura de atravessar os trilhos na Sete de Setembro. Vivem a Feira do Livro, as tartarugas da Saldanha Marinho, as histórias da Garganta do Diabo.

Santa Maria, a cidade de mil conexões. Cresce, muda e de algum modo permanece igual. A cidade por onde passam militares de todos os cantos e estudantes de lugares impensáveis. A cidade que acolhe quem busca ser mais. Pessoas que chegam e partem, levando a lembrança do vento norte e da beleza impressionante das montanhas.

Mas a melhor memória não é que retém nomes e espaços. A memória que aciona a empatia é aquela que reteve emoções fundas. Primeiro os colégios e os colegas. Depois a universidade e um mundo de ações coletivas que se desenham a partir da cidade. A Santa Maria que eu guardo na memória é a do movimento estudantil, dos secundaristas e depois do DCE. A cidade dos longos debates, das noites pichando poemas que desafiavam a brutalidade. Das festas, das idéias, das ruas cruzadas em bando nas madrugadas frias. Nosso caráter era moldado no coletivo.

Tudo isso muda, geração após geração. Alteram-se os espaços, as causas, os endereços. Os lugares se empilham na nossa memória, uns sobre os outros, sendo uma coisa, depois outra, e outra, e assim se fazem as histórias das cidades. Mas meio que muda sem mudar. A conexão afetiva está lá, e é ela que nos faz olhar para esta tragédia de um jeito enredado. Alguém disse, no Facebook, que a dor acontecia “na casa de cada um de nós”. É evidente que existem gradações, diferenças, distinções segundo a proximidade de cada um. Mas sim, é exatamente isso, acontece verdadeiramente dentro de cada um de nós. Expressar este sentimento nas redes sociais é o movimento óbvio, humano, de compartilhar.

Não temos a morte na agenda. Ela quase sempre nos pega de surpresa. Ela arrebenta, destroça, devasta. Especialmente quando é prematura e quando é desmedida. Mas também quando a nossa memória diz que ali não era apenas uma boate. E que na frente dali não era apenas um supermercado.