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quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Em nome dos pais e dos filhos.



As notícias de violência física contra crianças sempre provocam indignação e repulsa na sociedade em geral. Porém, dentro da intimidade dos lares, de forma velada e quase imperceptível, outra espécie de violência é praticada e se difunde rapidamente. Sem estar relacionada como crime, porém apresentando danos talvez mais danosos do que muitos dos que são tipificados pelo Código Penal: a violência moral, denominada como Alienação Parental que vitimiza o mais íntimo e sensível vínculo do ser humano: as relações de filiação.
Tal violência normalmente é praticada pela pessoa que mais deveria se preocupar com a preservação de tal vínculo: o genitor guardião. As vítimas diretas são os filhos, usados como instrumento de agressão às outras vítimas dessa prática: os genitores não guardiões. Assim, a prática da alienação parental encontra terreno fértil nas situações de guarda unilateral que, infelizmente, constituem-se na esmagadora maioria das decisões e acordos nas dissoluções de sociedades conjugais.
Nos últimos tempos têm aumentado a divulgação dessa prática e o seu combate tem sido acirrado especialmente pelas redes sociais. Grupos de pais denunciam essa violência e divulgam suas experiências buscando chamar a atenção dos legisladores e dos operadores de direito sobre a questão. Nessa luta denunciam a reiterada opção da guarda unilateral nas decisões judiciais, eis que certamente é a organização mais cômoda e atende aos preceitos costumeiros e culturais. Nessa ofensiva apontam especialmente as mulheres como alienadoras e, inclusive, acusam os advogados que atuam na área, como omissos na luta por outra forma de organização da questão. A justificativa para essa omissão seria a de que o litígio nos casos da guarda unilateral é mais acirrado, eis que questões como regulamentação de visitas, revisão e cobrança de alimentos, além da própria alteração de guarda, seriam conseqüências comuns e lógicas em tais casos, gerando, assim, maior fonte de renda e ganhos aos profissionais da área.
A acusação dos pais, vítimas de alienação parental, talvez não seja tão injusta assim. Nós, advogados na área de Direito de Família, bem como juízes, promotores e todos aqueles que se envolvem com as questões atinentes à matéria, devemos nos conscientizar de que também somos responsáveis pela proteção às crianças e aos adolescentes. Assim, menosprezando tal problema, na verdade estamos abrindo caminho ao conflito acirrado que atinge a mais importante das instituições sociais: a própria família. Conseqüentemente, estamos agredindo e violentando os membros que a integram, afetando a sua saúde mental.
O legislador brasileiro já havia buscado uma alternativa apontada pelos especialistas como meio de prevenção à alienação parental e, conseqüentemente, ao abandono afetivo: a guarda compartilhada. O artigo 1.583, parágrafo 2º do Código Civil, determina que a guarda compartilhada será aplicada pelo juiz, na ausência de acordo, sempre que possível. Tal regramento, porém, é inócuo, eis que essa opção raramente é escolhida pelos genitores, e os juízes só a definem caso haja consenso entre o casal. Pois bem, nova tentativa será feita, através do legislativo. No próximo dia 28 de outubro será votado no Senado Federal o Projeto de Lei 117/2013, que determina que a guarda compartilhada dos filhos seja obrigatória, desde que o pai e a mãe tenham condições de criá-los e que tenham interesse na guarda dos mesmos, tornando-se assim, de forma expressa a modalidade unilateral apenas como exceção.
É importante entender que, mais do que simplesmente definir-se essa forma de guarda conjunta, ainda será necessária a sua organização concreta. Isso deverá ser feito considerando-se cada caso concreto, eis que guarda compartilhada não se confunde com visitação livre.
Para tanto, além dos pais e da família extensa envolvida na questão, outras pessoas devem exercer papel efetivo na busca dessa transformação. Os juízes, que não podem se eximir de sua autoridade no caso de litígio; o promotor, que irá acompanhar o processo com a finalidade protetiva que lhe é inerente; os advogados, que devem ter em mente que o exercício da advocacia, na área de família, não pode ser combativo e sim conciliador: os educadores e demais participantes da rotina das crianças e adolescentes devem ser envolver e respeitar o processo de adequação familiar.
Se a entidade familiar se desajustou como sociedade conjugal, o vínculo de filiação é indissolúvel, e deve ser respeitado e preservado, sob pena de se desestabilizar o mais importante de todos os vínculos humanos: a relação entre pais e filhos.

sábado, 11 de outubro de 2014

Carta para o juiz dos meus pais




"Senhor juiz. Não lhe conheço pessoalmente, mas soube que o senhor está decidindo o futuro de minha família. Papai e mamãe não querem mais viver juntos. Eles me disseram que o casamento deles terminou, e vão deixar de ser marido e mulher. Disseram ainda que o senhor vai decidir com quem devo morar. Estou muito triste com isso, mas soube que os adultos às vezes têm dificuldade de resolver as coisas e não conseguem ser felizes, assim resolvem buscar outros caminhos. Queria pedir que o senhor fizesse meus pais compreender que eu não tive culpa pelas coisas não terem dado certo. E que eu não pretendo me separar deles. Acho que tenho metade de cada um, assim não tenho como me dividir. Quero ter os dois perto de mim, sem que isso cause mais problemas entre eles. A minha professora disse que isso se chama “guarda compartilhada”, e que, se os meus pais quiserem, ou se o senhor decidir assim, posso continuar convivendo com os dois, sem ter que escolher um como “titular” e o outro como “reserva”. Doutor juiz, o senhor nunca me viu, mas algumas pessoas já vieram conversar comigo a seu pedido, assim sei que o senhor sabe da minha existência. Sei também que o senhor mandou que eu ficasse com minha mãe e visse meu pai de quinze em quinze dias, nos finais de semana. Acontece que, às vezes, eu tenho vontade de ver meu pai durante a semana, e estar com minha mãe em outros finais de semana. Só que eu não posso dizer isso, porque eles ficam tristes, e até zangados um com o outro. Ainda quero lhe pedir que o senhor se encontre mais seguido com eles, parece que eles o respeitam muito, sua palavra e seus conselhos são como o de um “pai emprestado” para eles. A minha professora também me disse que a história de minha família esta num caderno no seu local de trabalho. Eu gostaria de encapá-lo com um reluzente papel para que ele não fosse esquecido no armário. O senhor vai decidir o fim de nossa história, mas está sendo ajudado por outras pessoas, em especial pelos advogados de meu pai e de minha mãe. Senhor juiz, faça com que todas essas pessoas que estão lhe ajudando não tornem isso uma competição, e que elas entendam que nessa história, não existem heróis, nem bruxas malvadas, nem devem ter vencedores de uma disputa. Nesse final de história todos devem ganhar e, especialmente, as crianças que precisam tanto do amor e da convivência dos seus pais. Acho, senhor juiz, que se a nossa história não for bem resolvida, daqui alguns anos, eu estarei contando outra história para o senhor resolver, dentro de outro caderno, e talvez o meu caso seja mais triste ainda. Sinceramente- A criança do processo nº..."

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A CERTIDÃO DE NASCIMENTO DE MARIA ANTÔNIA



Jornal Zero Hora, 24/09/2014

A decisão judicial no caso de multiparentalidade de Santa Maria vem despertando as mais diversas reações: desde as favoráveis, apoiando a iniciativa; até as mais ferrenhamente desfavoráveis, lastreadas nos mais diversos sentimentos. Justo, é livre a manifestação do pensamento. Existem milhares de processos em tramitação no Judiciário brasileiro, nos quais pessoas buscam o direito de reconhecimento de um pai, ou seja, lutam pelo direito de ter uma identificação paterna em sua documentação.

Maria Antônia é privilegiada. Foi reconhecida antecipadamente pelos pai e mãe biológicos e ainda ganhou uma mãe socioafetiva. Três famílias extensas participaram de seu pré- natal, comemoraram seu nascimento e lhe dão afeto, amparo e proteção. É uma história verdadeira coberta de sensibilidade e humanismo. Por isso a certeza de que a decisão não importará em qualquer reflexo negativo a Maria Antônia, que desde cedo crescerá sabendo da verdade e recheada de carinho e afeto pelos pais.

A não aceitação neste ou naquele grupo social é um fato social e, com certeza, não será pelo motivo de possuir uma certidão de nascimento diferenciada que será excluída. Num país de acentuadas desigualdades, inclusive afetivas, a possibilidade de ter três pais é mais uma chance de o indivíduo ser feliz. Talvez aqueles que se posicionaram de forma contrária ao caso não atentaram para o fato de que esta realidade existe. Quantos casos de multiparentalidade que não foram reconhecidos judicialmente? Inúmeros (quase todos)! O fato de constar dupla maternidade na certidão da Maria Antônia é a parcela de contribuição que o Poder Judiciário pode oferecer: segurança, valorização e status jurídico ao afeto. Rememorando a sensibilíssima decisão do MM. Juiz, Dr. Rafael Cunha, em que muito bem ponderou: “Que afeto demais não é o problema; o problema é a falta (infinda, abissal) de afeto, de cuidado, de amor, de carinho”. O novo Direito de Família atende aos princípios constitucionais, fundando um novo paradigma, no qual os sentimentos são considerados e valorizados através de decisões como a presenteada a Maria Antônia, seu pai, suas duas mães e seus seis avós... materializada através de sua certidão de nascimento.

Advogada dos autores da ação

BERNADETE SCHLEDER DOS SANTOS

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Ignorância- por Martha Medeiros


ZH- 03/09/2014 | 05h03
É comum chamar de ignorante aquela pessoa que não sabe ler nem escrever. Porém, esses são analfabetos, não ignorantes. A ignorância ultrapassa as questões escolares.
Qualquer pessoa que durante sua criação não tenha tido algum acesso à arte de boa qualidade, a noções mínimas de filosofia e psicologia, à literatura, à informação, à música e, principalmente, à ética e ao afeto, arranca em desvantagem. Pode conseguir se formar, virar bacharel, doutor, mas permanecerá endurecido por um mundo estreito, terá dificuldade de dialogar. Abandonado pela falta de critério, de instrução e de conhecimento, viverá bitolado como um selvagem. Não conseguirá enxergar o mundo de forma generosa, apenas rosnará para espantar o próprio vazio.
Como você deve ter adivinhado, isso nos leva ao menino Bernardo. Não preciso descrever o que senti ao ler a transcrição dos diálogos gravados dentro daquela casa em Três Passos – você sentiu o mesmo. É desolador. Leandro e Graciele, que em tese eram responsáveis pelo garoto, são dois débeis sem consciência do que suas atitudes provocavam. Mesmo que Bernardo fosse uma peste, era uma criança. Uma criança!
A covardia psicológica que sofreu é diabólica.
O desfecho do caso foi uma exceção – raros sãos os pais que matam filhos ou enteados. Porém, se os assassinos são poucos, os ignorantes proliferam em todos os bairros, em todas as classes sociais: inúmeros homens e mulheres simplesmente não zelam pela cabeça dos filhos. Ensinam a escovar os dentes, a dizer obrigado, matriculam numa escola e tarefa cumprida. São tão ignorantes que muitos fazem uma brincadeira considerada “didática”: estimulam o filho a se jogar de cima de um armário garantindo que o segurarão nos braços. E seguram. Seguram na primeira vez, na segunda, na terceira, até que na próxima a criança se joga e o pai o deixa se esborrachar no chão, justificando-se com a pérola: “É pra você aprender a nunca confiar em ninguém – nem em mim”.
Que cretinice. Crianças precisam aprender a confiar, não a desconfiar. Crianças precisam ter seus afetos respeitados, e não ouvir que a mãe e o pai que amam são vagabundos – mesmo que sejam. É preciso garantir a sanidade mental de uma criaturinha em formação, usar palavras amáveis, não destruir seus sonhos, dizer a verdade com jeito, não estimular a competição, não fazê-la se sentir desprotegida, não tratá-la com grossura, não obrigá-la a se posicionar como um adulto antes
da hora. Tudo isso também é violência.
Custaremos a ver outro assassinato hediondo como esse, mas crianças sofrendo agressões pesadas continuarão a existir. Elas não morrerão, mas crescerão com transtornos emocionais e um dia criarão seus próprios filhos de que maneira? Com o padrão miserável que vivenciaram.
Para evitar que crianças se esborrachem no chão e na vida, para fazê-las confiar em si mesmas e no mundo, só combatendo a ignorância.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Pluralidade de pais e mães



26/08/2014 | N° 12084
ARTIGO
Pluralidade de pais e mães, por Bernadete Schleder dos Santos*
* Professora de Direito de Família na Unifra e advogada especializada na área

O reconhecimento da relação de filiação passou por três fases distintas e excludentes no Direito brasileiro. Inicialmente, a maternidade era exclusivamente atribuída à gestante/parturiente, e a paternidade, ao marido desta, ou, no caso da inexistência do casamento, ao homem que voluntariamente reconhecesse a criança. É a chamada paternidade registral. Após, especialmente com a evolução e popularização do exame do DNA, a paternidade/maternidade biológica passou a determinar a relação jurídica, sendo fundamento da maioria das sentenças relacionadas à busca do reconhecimento da filiação. Mais recentemente, com fundamento na verdade sociológica, os pedidos e decisões passaram a valorizar o afeto e a convivência, respaldando aquilo que a sabedoria popular já anunciava: “pai é quem cria”. Até então, qualquer tipo de paternidade/maternidade era excludente, ou seja, uma vez reconhecido um tipo como preponderante, isso acarretava na exclusão do outro.

Lembro-me de um processo onde claramente foi identificada a filiação socioafetiva de duas crianças em relação a um pai, e a relação biológica e também socioafetiva em relação a outro. Após ouvir os dois pequenos autores, a juíza, sensibilizada pelos relatos, referiu que “se pudesse, mandava registrá-los em nome dos dois pais”. Nos tempos atuais, os julgadores descobriram que podem fazer isso, as decisões de multiparentalidade têm sido reiteradas e descortinam um novo paradigma em torno da questão. Reconhece-se, por fim, a importância do afeto, dos sentimentos, da realidade que não pode ser reprimida por fórmulas antigas, ideológicas ou religiosas. A família é plural, sim, e essa pluralidade existe também em relação ao número de pais e mães que podem ser coautores de um papel de cuidado, proteção e responsabilidade sobre uma única criança, atendendo assim, integralmente, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

CARTA ABERTA AO MARIDO INFIEL

Talvez a primeira dúvida que surge ao ser lido o título acima, seja acerca do destinatário dessa mensagem, afinal as esposas também podem ser infiéis. O recado a ser dado, porém, é dirigido diretamente ao marido infiel, aquele que mantém seu vínculo matrimonial, não tem a intenção de extingui-lo, mas mantém uma relação extraconjugal, não eventual e, normalmente clandestina. Todos sabem que são inúmeros esses casos, especialmente envolvendo homens de meia idade e mulheres bem mais jovens. Pois bem, se você se enquadra nesse perfil, recomendo que atente para o alerta que venho trazer. O sistema jurídico brasileiro ainda mantém a herança cultural da monogamia. Eu sei que ela está relativizada, afinal os tempos e costumes são outros, mas o crime de bigamia ainda está presente no Código Penal, o impedimento para o casamento de pessoas ainda casadas e o dever de fidelidade ainda são encontrados no Código Civil. Porém, a legislação brasileira regulamenta também a relação adulterina, qualificando-a como concubinato, e essa relação podem gerar alguns efeitos de ordem patrimonial. Talvez tudo isso seja de seu conhecimento, porém o alerta que deve ser feito é a tênue diferença entre o concubinato e a união estável. Nossos tribunais têm enfrentado essa questão e várias decisões já foram tomadas reconhecendo relações paralelas na forma de duas uniões estáveis ou de um casamento concomitante a uma união estável. Basicamente o que se verifica no caso concreto é o objetivo de constituir família nas duas relações. Identificando-se tal característica, somada ao consenso ou a boa fé das partes dos dois relacionamentos, muitas vezes os direitos patrimoniais são divididos. Assim ocorre especialmente com as pensões previdenciárias. Pois bem, marido infiel, se o seu intuito não é o de formar uma nova família paralela, mas sim manter um mero “affair” oculto, saiba que sua esposa pode sofrer consequências que vão além do dano moral da traição. No seu falecimento, a protagonista de seu caso extraconjugal pode pleitear no Juizado Especial Federal, num processo resumido e rápido, o reconhecimento de uma união estável. Basta provar a convivência duradoura, contínua e pública (bares; festas; passeios ao ar livre...), sendo que o principal requisito dessa relação protegida pela lei, o ‘intuito de constituir família’, cuja prova é tão cuidadosa nas Varas de Famílias, pode ser relativizado, justamente pela dificuldade da produção e análise probatória nesse procedimento especial. Qual a consequência desse reconhecimento? Sua esposa, aquela mesma que você escolheu, formalizou a comunhão de vida, e com quem convive há tantos anos, muitas vezes sob a sua exclusiva dependência econômica, pode ter que dividir a pensão em partes iguais com a “outra”, com quem você nunca teve a intenção de assumir como companheira. E você não mais estará aqui para remediar a situação...

sábado, 26 de abril de 2014

DIREITOS SUCESSSÓRIOS PARA LEANDRO BOLDRINI?

Quando vi aquele rosto sorridente na página da rede social com a manchete “desaparecido”, senti que ali havia alguma coisa em especial. Visitei a página original e notei que a comunidade, a madrinha, e outros parentes eram as pessoas que demonstravam preocupação. Logo percebi a ausência dos pais nas postagens. Durante alguns dias compartilhei a imagem, inclusive em site especializado em busca de crianças. Alguns dias depois, uma amiga policial comentou comigo o caso, e fez referência à suspeita sobre a possibilidade de um crime e a certeza da comunidade sobre o abandono afetivo. Comecei então a acompanhar mais detalhadamente o caso, até que em 14 de abril, por volta de 21 horas, foi divulgada a notícia da descoberta do corpo de Bernardo. Desabei... assim como o Brasil inteiro. A frieza e a crueldade na execução do crime tem sido exaustivamente discutida e analisada. Minha preocupação é outra: o sofrimento imposto por quatro anos a uma criança, a vista de toda uma cidade. Um sofrimento conhecido e propagado inclusive pela própria vítima. Imagino Bernardo, um menino inteligente e sensível, informando-se acerca da nossa legislação. Deve ter conhecido nosso Estatuto da Criança e do Adolescente, motivo de orgulho para nossos legisladores e operadores do direito, como a lei mais inovadora e abrangente na questão. Foi noticiado até mesmo que em seu quarto havia uma cópia desse Estatuto. Deve ter ficado eufórico ao saber que existe uma rede de proteção e que teria um lugar e pessoas específicas para buscar a ajuda. O que Bernardo não contava é que o sistema falha e a realidade é muito mais cruel do que a própria legislação pode prever. Não quero analisar o trâmite processual da questão, nem mesmo o fato do homicídio. A minha pretensão é discutir os efeitos da conduta paterna. Não a conduta criminosa suspeita, mas àquela evidente e provada, como chamamos em direito, o “fato notório” do abandono afetivo. Esse abandono tem sido objeto de ações judiciais em termos de responsabilização civil. O STJ, por duas oportunidades , já se manifestou a favor, mas deixa claro que são situações excepcionalíssimas pois as situações que envolvem traumas emocionais dentro da família são extremamente comuns. Acontece que todos os casos cogitados referem-se a indenizações por dano moral à própria vítima. E no caso de Bernardo? Haveria possibilidade de um dano moral coletivo? Penso que o médico Leandro Boldrini poderia cumprir sua pena (pelo inquestionável abandono afetivo) através de uma prestação de serviço à comunidade, eis que está sendo amplamente divulgada a sua competência profissional. A questão é saber como impor tal penalidade. O artigo 133 do Código Penal Brasileiro aponta como crime “abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono”, porém para uma denúncia dessa natureza deveria se inovar na interpretação e aplicação da lei penal. Também se poderia buscar a reparação cível pelo dano moral causado à própria sociedade, onde também se inovaria na questão da punição, revertendo a penalidade na efetiva colaboração à comunidade. Acho que tais temas merecem uma atenção e um estudo aprofundado. O que não pode acontecer de forma alguma, e isso é o que me fez desabafar através desse texto, é que o pai ausente e omisso, caso seja provado não ter participado no crime de homicídio, ainda possa ser herdeiro do menino Bernardo. Nossa legislação privilegia de forma acentuada o direito patrimonial sucessório. O artigo 1.814 aponta os casos de indignidade de herdeiro, e eles são “numerus clausus”, isto é, são somente os motivos relacionados, não admitindo interpretação extensiva. Entre eles está a participação no homicídio em qualquer de suas formas. Mas o abandono, a paternidade irresponsável e, nem mesmo a perda do poder familiar , ali são relacionadas. Assim, legalmente, Leandro Boldrini é o primeiro herdeiro de seu filho Bernardo, caso não seja comprovada sua participação no seu assassinato. A única forma legal de sua exclusão seria sua renúncia voluntária a essa herança, ou nossos julgadores trabalhassem a possibilidade de uma adoção “pós mortem” (desde que surjam interessados), extinguindo o vínculo de parentesco com efeito retroativo. Uma absoluta inovação, baseada essencialmente no princípio de que ninguém pode se beneficiar pela sua própria torpeza, e que, certamente seria aplaudida pela sociedade em geral. Talvez assim possamos nos reconciliar com o sentido de justiça para esse caso...

domingo, 16 de março de 2014

EMBRULHE-ME COM JORNAL

EMBRULHE-ME COM JORNAL


Fabrício Carpinejar






Como ler jornal várias vezes. Não há nenhuma notícia de interesse, nota e fato que despertem atenção, mas ainda assim volta-se a pegar o jornal para passar o tempo. Conhece-se o conteúdo, espia-se as editorias de novo, repassa-se as chamadas e a atitude é repetida à exaustão. Do início ao fim, do fim ao início. Os cadernos, os anúncios, as colunas, os obituários, as notícia recebem democrática distração. O jornal revela uma companhia fiel, como um cão ou um copo com gelo. Será lido até que se torne inofensivo. No balcão do zelador, na mesa da manicure, na escrivaninha de um arquiteto, será sacado o exemplar amarfanhado para cobrir o intervalo e a breve folga. Durará uma semana em um único dia. De dobrado e manuseado, terá estrias de deserto. Como explicar essa teimosia? É como se houvesse códigos ocultos entre as letras, um suspiro de sentido, uma descoberta a fazer. A mensagem cifrada não é para ser conhecida, a procura é a chegada. O jornal é relido pela esperança de que alguma coisa mudará de um minuto a outro, de que uma notícia que nos diz respeito aparecerá de repente. Assim me sinto com os filhos. É o mesmo texto lido de forma diferente. Ler de forma diferente é reescrevê-lo, apesar de não ter mudado absolutamente em nada o arranjo das páginas e a ordem dos parágrafos. Os filhos não são os pais, os filhos são o que eles precisam. Não os elogio quando parecem comigo, porém quando se parecem com as suas próprias verdades. Aqui faço um apelo a quem lê sua vida com a insistência de um jornal. Aqui faço um apelo aos pais que se separaram e cuidam dos seus filhos em casas separadas. Não fale mal do ex ou da ex na frente da criança, não subestime a sensibilidade dela. Se não consegue resolver seus problemas, ao menos não os aumente. A criança não merece herdar o seu ódio, o seu desafeto, a sua raiva. A criança não foi casada com a mãe ou com o pai, não adianta transferir as broncas. Não há continuidade espontânea, é sempre induzida. A herança genética não é uma religião, com velas acesas diante de santos. E não falo de palavras, e sim das caretas, do esgar, do repuxo das sobrancelhas. O filho capta o desprezo ou a indiferença nos gestos. No telefonema seco e irritante. Nas piadas mórbidas. Até no silêncio e na omissão. Palavra é também o que não nasce da boca. Sua experiência represará o sangue dos filhos e pode reprimir possíveis e autênticas escolhas. E eles se verão divorciados, desquitados e viúvos antes de casar. Já houve uma separação, para quê duas? Não diga que o ex ou a ex não presta, porque não encontrou utilidade como queria. Não houve futuro ao casal, então que não se apague o passado. Os anjos conhecem o inferno por ouvir falar. Falar já é fazer o inferno. Depois não adianta procurar um psicólogo para o filho e argumentar que não o entende. Ele se vê dividido entre duas chantagens, entre duas promessas, entre duas vidas. É natural explodir, cobrar e se desesperar. A criança mal se aprendeu e precisa optar por aquilo que não viveu. Não tirou a carteira de identidade e é obrigado a definir sua assinatura. Trata-se de uma carga excessivamente nociva para sair com a urina. Duvido de todo amor que se transforma em vingança, da confiança reduzida à represália, do conselho que vira ameaça, da proteção que termina em dependência. É desumano transformar o filho em garoto de recados. É desumano fazer indiretas, confundir onde existe lealdade, invejar os segredos que não foram contados. Toda guerra é suja, ainda mais a psicológica, onde crianças são usadas como escudo humano para parcelar dívidas. Na ausência de amizade, serve a cordialidade e o respeito. Para ser pai ou mãe, é necessário ter sido filho e não ter esquecido. Como ler jornal várias vezes.   

domingo, 9 de março de 2014

Pensão compensatória

DIREITO COMPARADO

Alimentos compensatórios no Brasil e no exterior (parte 1)

1. IntroduçãoO Direito de Família brasileiro tem-se mostrado bastante receptivo a institutos e figuras dos Direitos Comparado e estrangeiro. Em sendo correto dizer que as bases teóricas clássicas do Direito de Família foram arrasadas após destruição de seu antigo fundamento — a legitimidade —, é também bastante nítida a busca por um novo suporte, embora seja cada vez mais referido o princípio da afetividade.[1]
Ao tempo em que o Direito de Família está em busca de um novo fundamento teórico[2], que corresponda aos profundos câmbios normativos decorrentes da Constituição de 1988 e, com menor intensidade, do Código Civil de 2002, esses novos institutos e figuras surgem por meio de contribuições doutrinárias ou das decisões judiciais, ao exemplo dos chamados “alimentos compensatórios”. E tanto mais polêmicas são essas novas questões quanto nelas se imbrica o problema patrimonial. É o que se observa, por exemplo, no ressarcimento por violação de deveres conjugais ou por abandono afetivo. Nos “alimentos compensatórios”, há uma outra conexão: quando há separação convencional de bens, é possível utilizar essa verba para reequilibrar a situação econômico-financeira dos ex-cônjuges?
São esses interessantes problemas que se terá a oportunidade de discutir nesta e nas próximas colunas, tomando-se por base (a) a jurisprudência, (b) a doutrina nacional e (c) o Direito estrangeiro.
2. O reconhecimento aos alimentos compensatórios no Superior Tribunal de Justiça
2.1. O Caso Collor-RosaneUm dos casos mais importantes para o Direito de Família no ano de 2013 foi o julgamento do recurso especial relativo aos alimentos compensatórios. A despeito do segredo de justiça que envolve o processo, que impediu a página eletrônica do Superior Tribunal de Justiça de divulgar o número do recurso, a situação de fato foi amplamente divulgada nos meios de comunicação, sem qualquer restrição ao nome das partes, a saber: Fernando Affonso Collor de Mello, ex-presidente da República e atualmente senador da República pelo estado de Alagoas, e Rosane Brandão Malta, ex-primeira-dama brasileira.[3]
Como não é possível a consulta aos autos eletrônicos, deve-se confiar no resumo divulgado na página eletrônica do tribunal e dele extrair os elementos descritivos do caso, que foi decidido pela 4ª Turma do STJ, na sessão de 12 de novembro de 2013: [4]

a) O senador Fernando Collor e sua ex-mulher Rosane Malta casaram-se no ano de 1984, sob o regime de separação convencional de bens. Eram as segundas núpcias de Fernando Collor e as primeiras de Rosane Malta, que ainda não havia completado 20 anos.
b) Durante o matrimônio, Fernando Collor foi governador do estado de Alagoas e depois eleito presidente da República. Seu mandato foi abreviado em razão do impeachment ocorrido em 1992. O casal manteve-se unido, apesar de diversas crises divulgadas na imprensa, até o ano de 2005. A separação foi litigiosa e cumulada por uma oferta de alimentos por Fernando Collor, no valor de R$ 5,2 mil, a qual foi contestada por Rosane Malta, que pretendia receber R$ 40 mil.
c) A sentença do juízo de primeiro grau, da Justiça alagoana, deferiu a Rosane Malta dois automóveis e R$900 mil em imóveis, além de uma pensão de alimentos no valor de 30 salários mínimos mensais, pagáveis enquanto lhes fossem necessários. A matéria foi devolvida ao Tribunal de Justiça de Alagoas, que, ao apreciar a apelação do ex-marido, “reduziu a pensão mensal para 20 salários mínimos pelo período de três anos, mantendo a sentença no restante”. Houve recurso de embargos infringentes, após o que “o tribunal estadual restabeleceu o valor de 30 salários mínimos e afastou a limitação de três anos”.[5]
d) No STJ, a matéria foi apreciada em Recurso Especial, tendo como argumentos da parte do ex-marido, o fato de que não houve pedido expresso de alimentos compensatórios pela ex-mulher e, por essa razão, o julgamento fora extra petita. Rosane Malta argumentou que ela se casou aos 19 anos e permaneceu casada ao lado do marido por 22 anos, sem que o ex-marido houvesse colocado qualquer bem em seu nome, o que implicaria “abuso de confiança” por parte de Fernando Collor.
e) No julgamento do recurso, entendeu-se que: i) é possível a atribuição de alimentos compensatórios, na hipótese de quebra do equilíbrio econômico-financeiro decorrente da separação; ii) os alimentos devem ser fixados em prazo de três anos, a contar do trânsito em julgado da decisão; iii) dever-se-ia admitir a transferência de bens de um cônjuge a outro, nos termos do quanto estabelecido nas instâncias ordinárias.
Quanto ao direito aos alimentos compensatórios, o relator ministro Antonio Carlos Ferreira não foi acompanhado pelo ministro Marco Buzzi, em cujo voto dissidente se salientou que a transferência de bens seria contrária ao pacto antenupcial.
No que se refere ao temporal de três anos resultou das discussões durante a sessão de julgamento, com o voto prevalente dos ministros Antonio Carlos Ferreira (relator), Luís Felipe Salomão e Raul Araújo, sob o fundamento de que esse tempo seria suficiente para a preparação do alimentando para a nova realidade econômica advinda do fim da pensão e sua eventual preparação para o mercado de trabalho. Foram dissidentes os ministros Marco Buzzi e Isabel Gallotti, para quem seria dificultoso para uma mulher na altura dos 50 anos aprender um ofício e ganhar a vida com seu próprio esforço, especialmente após ter-se casado aos 19 anos e haver dedicado grande parte de sua vida no acompanhamento de seu ex-cônjuge em suas atividades políticas.
2.2. Os alimentos compensatórios e a verba decorrente dos frutos dos bens comuns: Dois outros importantes precedentes do STJ
A) RHC 28.853/RSÉ de se registrar que, antes do julgamento do caso relatado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, no STJ houve um acórdão no qual o problema dos alimentos compensatórios surgiu em um dos capítulos decisórios. Trata-se do RHC 28.853/RS, relatora a ministra Nancy Andrighi e redator par o acórdão o ministro Massami Uyeda, julgado em 3º Turma, no dia 1º de dezembro de 2011, com publicação no DJe de 12 de março de 2012. Subjacente ao recurso, havia uma execução de alimentos, que foram decididos em ação de separação judicial litigiosa. Em uma decisão monocrática, nos autos da ação de separação, fixou-se em favor do cônjuge virago uma “verba (...) qualificada não como alimentar (...) por força dos frutos que lhe cabe (sic) do patrimônio do casal, já que o demandado está na posse e administração dos bens”, no equivalente a 10 dez salários mínimos.
Posteriormente, foi decretada a prisão do ex-cônjuge varão, que não pagava os valores estabelecidos. O juízo de primeiro grau, para esse fim, contrariando a decisão anterior, alterou a qualificação da “verba não alimentar” e declarou que essa se constituía em “obrigação alimentar (...) mesmo que de cunho compensatório, já que se destina à mantença da autora”.
O ex-marido impetrou Habeas Corpus no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O acórdão foi-lhe desfavorável.
No STJ, por meio de recurso ordinário em habeas corpus, o alimentante sustentou que a prisão civil seria “manifestamente ilegal”, porquanto “os alimentos objeto da referida execução não têm caráter alimentar, conforme expressamente consignado na própria decisão que os fixou”.
Estava em jogo a questão de saber se esses valores, estabelecidos com caráter nitidamente compensatório, seriam dotados de natureza alimentar e, em segundo plano, se fosse reconhecida esse caráter à verba, surgiria o problema de os compensatórios também se sujeitarem ao regime da prisão civil no caso de inadimplemento dessa obrigação.
A ministra relatora Nancy Andrighi, louvada na doutrina de Rolf Madaleno, entendeu que a “pensão compensatória” possuía caráter ressarcitório e compensatório, e, por essa razão, esses alimentos “não se submetem aos meios executórios coercitivos previstos no
art. 733 do CPC”. No caso dos autos, porém, a verba assumiria natureza de alimentos, pois não houve “distorção na partilha”, “(...) notadamente porque inexiste a própria partilha, elemento essencial à concretização do desequilíbrio gerador das hipóteses de cabimento da pensão compensatória, a qual tem como primordial escopo restaurar a simetria socioeconômica dissipada com o rompimento dos laços afetivos”. Com base nessa distinção, a relatora manteve a decisão denegatória do HC e negou provimento ao ordinário.
O ministro Massami Uyeda, em divergência, que terminou por ser vitoriosa, deu provimento ao recurso. Segundo o relator para o acórdão: a) as decisões de primeiro grau deixaram “expressamente assente que a verba correspondente aos frutos do patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto na posse exclusiva do ex-marido, não teria caráter alimentar”; b) no entanto, na execução de alimentos, houve contraditória atribuição dessa natureza, de molde a permitir a aplicação do artigo 733 do Código de Processo Civil, cuja incidência só se justifica quando houver inadimplemento de “alimentos provisionais”, assim fixados em decisão judicial, o que implica a decretação de prisão civil do alimentante.
Ainda segundo o redator para o acórdão, (c) o dever de prestar alimentos, durante a vigência do casamento, funda-se na assistência mútua dos cônjuges. Uma vez extinta a sociedade matrimonial, esse dever substitui seu fundamento para se esforçar na solidariedade conjugal, tendo um sentido estrito: a conservação dos meios de subsistência, o que se explica pelo binômio necessidade-possibilidade. No caso levado ao exame do STJ, “executa-se a verba correspondente aos frutos do patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto aquele se encontra na posse exclusiva do ex-marido”. Essa verba não tem fundamento na solidariedade, muito menos na mútua assistência conjugal, mas no direito de meação. Dito de outro modo: evita-se que, enquanto pendente a partilha, haja enriquecimento sem causa em favor de um dos cônjuges, especificamente aquele que detém a posse dos bens comuns.
O ministro Massami Uyeda, ao enfrentar o tema específico dos “alimentos compensatórios, entendeu que (d) os valores decorrentes da partilha, como se cuida da hipótese do recurso ordinário, não se confundiriam com o conceito de “pensão compensatória” ou “alimentos compensatórios”, “que tem por desiderato específico ressarcir o cônjuge prejudicado pela perda da situação financeira que desfrutava quando da constância do casamento e que o outro continuou a gozar”. A finalidade dos compensatórios é desconectada da oferta de meios indispensáveis à manutenção do alimentando, porquanto “objetivam minorar o desequilíbrio financeiro experimentado por apenas um dos cônjuges em razão da dissolução da sociedade conjugal”. A hipótese de prisão civil, considerados os elementos descritivos do processo oriundo do Rio Grande do Sul, não seria adequada, conforme assinalou o redator para o acórdão.
Neste complexo julgamento, o ministro Sidnei Beneti pediu vista e apresentou um erudito voto acompanhando a divergência e tendo a oportunidade de oferecer algumas considerações sobre a natureza dos alimentos compensatórios:
a) O uso da expressão “alimentos compensatórios” abre margem para equívocos desnecessários quanto à sua natureza pseudoalimentar. Seria mais adequado referir-se a “prestação” (arts. 270-271 do Código Civil francês) ou “pensão” (art. 97 do Código Civil espanhol) e deixar “alimentos” para qualificar o que tradicionalmente se denominou de “verba destinada à subsistência material e social do alimentando (alimentos naturais e civis, ou côngruos)”.
b) Os “alimentos compensatórios” não possuem caráter alimentar ou civil e ostentam, na verdade, “natureza indenizatória”, ao estilo do que ocorre na legislação francesa. Essa distinção essencial impede a incidência do artigo 733 do CPC e, com efeito, a própria noção de custódia civil no caso de inadimplemento é de ser repelida, segundo o ministro Sidnei Beneti.
c) O não encerramento da partilha e o uso astucioso de um terceiro para figurar como recebedor fraudulento de valores em conta-corrente (a mãe do alimentante) não podem, de per si, alterar a natureza jurídica da verba não adimplida, “embora dessas circunstâncias possam-lhe advir consequências adversas no decorrer do processo de execução, desprovido da característica de execução alimentar, quer dizer, ao caso não se aplica o disposto no art. 733, § ún., do Cód. de Proc. Civil”.
O julgamento terminou com o provimento do recurso, por maioria de votos. Acompanharam o voto dissidente do ministro Massami Uyeda os ministros Sidnei Beneti e Villas Bôas Cueva. Vencida a relatora ministra Nancy Andrighi.
B) HC 34.049/RSMuito citado durante o julgamento do RHC 28.853/RS foi o acórdão da 3ª Turma do STJ, prolatado na sessão de 14 de maio de 2004, com publicação na RT 831/219, com relatoria do ministro Carlos Alberto Direito, no qual também se afastou a prisão civil por inadimplemento de verba alimentar.
O essencial desse julgado de 2004 está na interpretação dada ao artigo 4o, parágrafo único, da Lei no 5.478/1968, a conhecida Lei de Alimentos. O caput prevê que o juiz, ao receber a inicial, fixará imediatamente “alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se o credor expressamente declarar que deles não necessita”. O parágrafo único ressalva que, em se tratando de casamento com regime de comunhão universal, “o juiz determinará igualmente que seja entregue ao credor, mensalmente, parte da renda líquida dos bens comuns, administrados pelo devedor”.
Em situação idêntica a do RHC 28.853/RS, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decretara a prisão do ex-cônjuge, por ele haver-se recusado a pagar, “enquanto não for concretizada a partilha”, o equivalente a 16 salários mínimos, “‘a título de frutos dos bens comuns’”.
Nos termos do voto condutor, o parágrafo único do artigo 4o da Lei de Alimentos “estabelece distinção entre os alimentos provisórios e os frutos dos bens comuns”. Esse quantum não se confundiria “com os alimentos provisórios, daí não ensejar a prisão civil prevista no art. 733, § 1º, do Código de Processo Civil”.
4. Conclusão
O acórdão do STJ, no caso Collor-Rosane, apresenta diversas questões de interesse para o Direito de Família, como (a) os limites à interferência judicial em um regime de separação convencional de bens; (b) a extensão temporal do direito aos alimentos; (c) a existência dos chamados “alimentos compensatórios” como figura jurídica autônoma no ordenamento jurídico e a (d) formulação de um princípio do equilíbrio econômico nas relações conjugais.
Inicia-se, com esta coluna, uma série sobre os “alimentos compensatórios”, sempre considerando o enfoque doutrinário nacional e também o Direito estrangeiro, mas, por limitações de espaço, centrando-se nos itens (c) e (d). Quanto ao item (a), recomenda-se a leitura das colunas Limites da intervenção judicial na separação de bens e Suprema Corte britânica valida pacto antenupcial. Na próxima coluna, será exposta a visão da doutrina nacional sobre o problema dos alimentos compensatórios.

[1] Publicou-se em 2013 uma interessante obra de Ricardo Lucas Calderón, prefaciada por Luiz Edson Fachin, que tenta dar contornos ao princípio da afetividade: Calderón, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
[2] Busca essa que, para muitos doutrinadores brasileiros, já se encerrou com a adoção do princípio da afetividade como sucedâneo do princípio da legitimidade.
[3] Em uma rápida pesquisa na internet é possível informações sobre o caso e as partes envolvidas:STJ retoma julgamento do pedido de pensão da ex-primeira-dama Rosane Collor e Vida dura, ambos acessados em 24/12/2013.
[4] Disponível neste link . Acesso em 22/12/2013.
[5] Transcrição das informações divulgadas no sítio eletrônico do STJ, neste link. Acesso em 22/12/2013.
DIREITO COMPARADO

Alimentos compensatórios no Brasil e no exterior (parte 2)

1. Os alimentos compensatórios na doutrina nacional (introdução)Nesta série de colunas sobre os alimentos compensatórios, que teve seu início na semana passada (clique aqui para ler), tem-se como um dos pontos mais notáveis o fato de que esse tema nasceu da contribuição doutrinária e foi levado aos tribunais nos últimos 10 anos, como se expôs no exame da jurisprudência na última coluna. Agora, é necessário pesquisar como os autores nacionais introduziram e desenvolveram essa questão no Brasil.
Um dos primeiros escritos sobre os alimentos compensatórios no país, se não foi o primeiro, deve-se a Rolf Madaleno, que defendeu a autonomia e a possibilidade de fixação dessa modalidade de verba alimentar em 2004, em um artigo publicado na Revista CEJ, sob o título Obrigação, dever de assistência e alimentos transitórios.[1] Posteriormente, Rolf Madaleno desenvolveu esse tema na primeira edição de seu Curso de Direito de Família, especificamente nos itens 15.24 e 15.24.1, o que teve sequência nas edições posteriores desse livro[2] e em outras publicações de sua autoria.[3]
Com as primeiras questões surgindo na jurisprudência nacional, avolumaram-se as publicações sobre os alimentos compensatórios na doutrina. A maior parte desses novos textos segue a estrutura proposta por Rolf Madaleno e defende a autonomia dos alimentos compensatórios, bem como sua possibilidade de fixação.[4] São excepcionais os autores que oferecem um contraponto a essa construção teórica, como o fundamentado artigo de José Fernando Simão, cujo título é autoexplicativo: Alimentos compensatórios: desvio de categoria e um engano perigoso.[5]
É bastante útil proceder a uma revisão de literatura sobre esse interessante tópico do Direito de Família contemporâneo.
2. Alimentos compensatórios e a visão doutrinária prevalecente: natureza, fundamento e duraçãoNo escrito de 2004, Rolf Madaleno considera que os alimentos, à moda da doutrina clássica, são devidos entre parentes e também como resultado do dever de mútua assistência, que existe entre cônjuges e companheiros.[6] A evolução do conceito de alimentos, especialmente aqueles pagos após a separação dos cônjuges (ou dos companheiros), foi marcada pelo avanço da ideia da igualdade entre os gêneros e pelo reconhecimento da necessidade da mulher — a quem se voltavam as regras protetivas — de buscar espaço no mercado de trabalho.[7] Com o Código Civil de 2002, o elemento da culpa na separação deixou de ser central para o nascimento da pretensão aos alimentos: mesmo o culpado pode requerer alimentos “no montante indispensável” à sua “subsistência”.[8]
Rolf Madaleno, em seguida, cuidou das “novas figuras jurídicas no campo alimentar”, sendo uma delas a relativa aos “alimentos compensatórios”. A exposição sobre esse tema inicia-se com citações da doutrina espanhola, que conhece a “pensão alimentar”, que é apresentada como uma prestação pecuniária periódica, devida por um cônjuge em relação ao outro, a partir da separação ou do divórcio, “se disso provier desequilíbrio econômico em comparação com o estilo de vida experimentado durante a convivência matrimonial, para compensar, desse modo, a sensível disparidade no padrão social e econômico do separando alimentário, comprometendo, com a ruptura das núpcias, os seus compromissos materiais, seu estilo de vida e a própria subsistência”.[9]
O fundamento dessa “pensão alimentar” estaria nas seguintes causas: a) muitos casamentos extinguem-se sem que um dos cônjuges receba algo na partilha, seja pela adoção de um regime de bens convencional de separação total, seja pelo regime legal imposto em lei ou por circunstâncias inerentes à evolução do patrimônio do casal durante sua união; b) a extinção do vínculo matrimonial ou da sociedade entre os cônjuges faz com que um deles termine por cair em situação de indigência ou em condições de total assimetria em relação ao antigo cônjuge, impossibilitando a continuidade do padrão de vida; c) é necessário conservar o status social do cônjuge que se separou e, de uma hora para a outra, não mais possui meios econômicos autônomos para se manter no anterior padrão de vida. No entanto, só se terá direito a tal “pensão”, quando ficar provado que o cônjuge não possui rendimentos, bens ou vínculo de emprego capazes, por si mesmos, de lhe conferir essa estabilidade de classe. Seu objetivo, em síntese, preservar o equilíbrio econômico-financeiro existente ao tempo do casamento.[10]
A “pensão compensatória” não teria “o caráter alimentício de manutenção permanente do cônjuge, mas carrega uma função de natureza indenizatória, para reequilibrar a alteração econômica do cônjuge financeiramente abalado” com o fim do casamento ou da sociedade conjugal. Quanto à sua duração, ela seria variável, a depender das condições específicas de cada união e da capacidade de trabalho ou de aprendizado de um ofício pelo alimentando. Sendo certo que os alimentos compensatórios, “ao contrário dos transitórios”, não devem ser fixados com base em tempo determinado e sim devem aguardar eventual pedido de exoneração ou de revisão, a depender da permanência de seus pressupostos com o passar do tempo.[11]
Essa ordem de ideias é, de um modo geral, conservada por Rolf Madaleno em trabalhos mais recentes.[12] Embora, esse autor haja usado, em obra de 2010, a expressão “pensão compensatória” com maior ênfase do que “alimentos compensatórios”.[13]
Na doutrina, ganham força as ideias de que: a) haveria um equilíbrio econômico-financeiro nas relações conjugais; e que b) sua preservação seria funcional ao Direito de Família.[14] Existem também os que mencionam a boa-fé objetiva como fundamento desse direito a alimentos compensatórios.[15]
Outro problema que a doutrina tem considerado é o relativo à possibilidade de prisão civil do devedor, na hipótese de inadimplemento da obrigação de pagar alimentos compensatórios. Como exposto na última coluna, essa separação entre os alimentos compensatórios e os alimentos provisionais restou bem definida na jurisprudência do STJ, que não permitiu a aplicação aos primeiros do rito executivo do artigo 730, muito menos a prisão civil. Na dogmática, não há ainda consenso sobre essa matéria, embora se perceba uma tendência no afastamento dessa medida. [16]
3. Uma orientação doutrinária crítica ao conceito de alimentos compensatóriosNa primeira coluna da série, ao se descrever a posição já firmada na jurisprudência do STJ sobre os alimentos compensatórios, especificamente no caso do RHC 28.853/RS, anotou-se a erudita crítica do ministro Sidney Beneti à nomenclatura e à função dos “alimentos compensatórios”. Convém recordar suas observações: a) em França e Espanha, fala-se, respectivamente, em “prestação” e em “pensão”, ao invés de “alimentos compensatórios”; b) referir-se a essa verba como “alimentos” é dar causa a confusões desnecessárias, pois aquela não possui a natureza de “verba destinada à subsistência material e social do alimentando (alimentos naturais e civis, ou côngruos)”; c) os ditos alimentos compensatórios não se podem assim considerar porque sua funcionalidade é distinta dos alimentos naturais ou civis.
Essa visão crítica tem sido acompanhada por alguns trabalhos publicados nos últimos anos. A título de exemplo, cite-se a dissertação de mestrado de Clilton Magalhães dos Santos, defendida em 2009, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob orientação de Antonio Carlos Marcato, na qual o autor oferece três objeções aos “alimentos compensatórios”: a) os alimentos civis já serviriam,de per si, ao propósito da conservação do “nível econômico de vida do separado ou divorciado”; b) o dever de assistência conjugal não se extingue após o fim do casamento ou da sociedade conjugal, o que se reflete na utilidade autônoma dos alimentos civis para o fim indicado na letra “a”; c) se a verba possui natureza reparatória, é inconciliável chamá-la de “alimentos”, quando o pressuposto para esse tipo de quantia é a existência de um dano reparável.[17]
Mais recentemente e com foco exclusivo nesse tema, José Fernando Simão publicou um artigo no qual aprecia os alimentos compensatórios sob um enfoque igualmente crítico e que merece ser exposto. As ideias desse autor podem ser assim resumidas: a) a noção clássica de alimentos, que vem sendo transmitida pela doutrina há muito tempo, associa essa verba à função de manter a vida, em termos materiais, morais e sociais, de um indivíduo, como decorrência de sua necessidade e em contraponto à capacidade de sua oferta pelo obrigado, dito alimentante;[18] b) o conceito de alimentos, tomado este como uma categoria, é implicado com suas características, a saber: irrenunciabilidade, intransmissibilidade, incessibilidade, impenhorabilidade, incompensabilidade, natureza não transacionável e imprescritibilidade[19]; c) a despeito de alguns debates pontuais sobre a universalidade dessas características, elas conferem aos alimentos sua integridade como figura jurídica, o que torna possível, após uma comparação, afirmar que os “alimentos compensatórios” não são alimentos em sentido próprio[20]; d) ademais, não haveria um critério uniforme para lhes emprestar fundamento jurídico, o que pode levar à aplicação dessa figura jurídica “a duas situações completamente diversas”, em razão do “desvio de categoria que gera um engano perigoso”. Em suma, para José Fernando Simão, “alimentos que não tem nenhuma característica de alimentos não são alimentos”.[21] Os alimentos compensatórios podem representar “um desvio de categoria e um engano perigoso”.[22]
4. ConclusãoA doutrina brasileira contemporânea tem-se colocado, de modo majoritário, favoravelmente aos “alimentos compensatórios”, o que se reflete no tratamento da matéria pelos tribunais, embora se possa notar, no citado RHC 28.853/RS, do STJ, uma orientação bem mais crítica a seu uso, inclusive com restrições de natureza onomástica e funcional. A ausência de norma no ordenamento jurídico sobre esses “alimentos compensatórios” é outra questão problemática, pois permite uma maior discricionariedade judicial na utilização dessa figura jurídica, sem que haja um desenvolvimento amplo de seus limites na doutrina. Note-se que a originalidade de sua recepção doutrinal no Brasil deu-se em face de experiências normativas de outros países, nomeadamente Espanha e França, que reformaram suas legislações há mais de 20 anos e cujos efeitos hoje são bastante discutidos. Uma das conclusões que o estudo da doutrina oferece está em que, ao menos em termos onomásticos, é conveniente abandonar o uso do qualificativo “alimentos”, dada a enorme assimetria que existe entre o conceito clássico, e já estabelecido dos alimentos civis, e o que se vem utilizando na jurisprudência. A esse respeito, as palavras do ministro Sidnei Benetti, no RHC 28.853/RS, são mais do que adequadas:
“A expressão “ alimentos compensatórios, trazida aos autos, presta-se a confusão que se evita facilmente se dela retirado o termo alimentos” e substituído por prestação” (Cód. Civil Francês, arts 270 e 271) ou “pensão” (Cód. Civil Espanhol, art. 97), reservando-se o termo “alimentos” para aquilo que mais que centenária terminologia legal e doutrinária sempre assim denominou no mundo, ou seja, a verba destinada à subsistência material e social do alimentando (alimentos naturais e civis, ou côngruos (PONTES DE MIRANDA, Trat. Dir Priv, RJ, Borsoi, 1955, T. IX,, p. 207; CARLOS ROBERTO GONÇALVES, Dir. Civ. Bras, SP, Saraiva, 5ª ed., 2008, Vol. VI, p. 451)”.
E é precisamente sobre o Direito Comparado de que se cuidará na próxima coluna sobre o tema.

[1] Madaleno, Rolf. Obrigação, dever de assistência e alimentos transitórios. Revista CEJ, v. 8, n. 27, p. 69-78, out./dez. 2004.
[2] Madaleno, Rolf. Curso de Direito de Família. 3 ed.Rio de Janeiro: Forense, 2009.
[3] Madaleno, Rolf. Novos horizontes no Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2010. Itens 3.9 e 3.10; Madaleno, Rolf. Responsabilidade civil na conjugalidade e alimentos compensatórios. Revista brasileira de direito das famílias e sucessões, v. 11, n. 13, p. 5-29, dez./jan. 2009/2010.
[4] Veja-se uma relação meramente exemplificativa de obras que analisam o problema dos alimentos compensatórios de modo principal ou incidental: Souza, Gelson Amaro de. Alimentos provisionais, alimentos provisórios, alimentos compensatórios : diferenças existentes. Revista Magister: Direito Civil e Processual Civil, v. 8, n. 48, p. 5-27, maio/jun. 2012; Freitas, Douglas Phillips. Alimentos gravídicos:Comentários à Lei 11.804/2008. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 90-91; Beraldo, Leonardo de Faria. Alimentos no Código Civil: Aspectos atuais e controvertidos com enfoque na jurisprudência. Belo Horizonte: Fórum, 2012. capítulo 14; Souza, Ionete de Magalhães; Siqueira, Heidy Cristina Boaventura. Alimentos compensatórios e o equilíbrio econômico com a ruptura matrimonial ou da união estável. Revista Síntese : Direito de Família, v. 14, n. 75, p. 137-144, dez./jan. 2012/2013; Pereira, Rodrigo da Cunha. Divórcio: teoria e prática. 3. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2011. p. 134-145; DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6. ed. São Paulo: RT, 2010; GRISARD FILHO, Waldyr. Pensão compensatória: efeito econômico da ruptura convivencial. Revista IOB de Direito de Família. v. 69, p. 117-128, 2012.
[5] Simão, José Fernando. Alimentos compensatórios: desvio de categoria e um engano perigoso.Revista do Instituto de Direito Brasileiro. Ano 2, n. 6, p. 5841-5850, 2013.
[6] Madaleno, Rolf. Obrigação, dever de assistência e alimentos transitórios...p.70.
[7] Madaleno, Rolf. Obrigação, dever de assistência e alimentos transitórios...p.70-71.
[8] Madaleno, Rolf. Obrigação, dever de assistência e alimentos transitórios...p.71.
[9] Madaleno, Rolf. Obrigação, dever de assistência e alimentos transitórios...p.74-75.
[10] Madaleno, Rolf. Obrigação, dever de assistência e alimentos transitórios...p.75-76.
[11] Madaleno, Rolf. Obrigação, dever de assistência e alimentos transitórios...p.76.
[12] Madaleno, Rolf. Curso de Direito de Família...p. 720 e ss.
[13] Madaleno, Rolf. Novos horizontes... item 3.10.
[14] Grisard Filho, Waldyr. Op. cit. p. 126
[15] Farias, Cristiano Chaves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2012. v. 6. p. 791-792.
[16] Pela impossibilidade da prisão civil: Souza, Ionete de Magalhães; Siqueira, Heidy Cristina Boaventura. Op. cit., loc. cit.; Simão, José Fernando. Op. cit. p.5850. Em sentido contrário: Pereira, Rodrigo da Cunha. Op. cit. p. 142
[17] Santos, Clilton Guimarães dos. Tutela jurisdicional ao direito a alimentos: efetividade do processo e execução da prestação alimentar. Dissertação (Mestrado em Direito). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009. p. 79-80.
[18] Simão, José Fernando. Op. cit. p. 5841-5842.
[19] Simão, José Fernando. Op. cit. p. 5842.
[20] Simão, José Fernando. Op. cit. p. 5845.
[21] Simão, José Fernando. Op. cit. p. 5849.
[22] Simão, José Fernando. Op. cit. p. 5850.

Alimentos compensatórios no Brasil e no exterior (Parte 3)

O casamento pode ser qualificado como uma instituição, uma figura jurídica, uma categoria ou uma espécie de negócio jurídico. Sua natureza jurídica é questão das mais controvertidas, dada a existência de uma tensão entre cada vez maior entre (a) Direito e Moral e (b) o Direito Público e o Direito Privado, no que se refere à sujeição do casamento às respectivas esferas.
Em relação ao primeiro núcleo (a), desde o fim da década de 1960 até aos dias atuais, o casamento tem-se submetido a um gradual processo de alienação (no sentido de se alhear) do campo da moralidade. Os elementos religiosos, que durante tantos séculos serviram de conteúdo para as formalidades e os deveres matrimoniais, foram lentamente alienados do casamento. O divórcio, a tese do fim do dever de fidelidade e a descriminalização do adultério são símbolos dessa departição de espaços entre a Moral e o Direito no matrimônio. As recentes discussões sobre a poliafetividade, que é antípoda ao regime monogâmico, são mais um exemplo desse movimento em direção a um casamento sem conteúdo moral. Paradoxalmente, substitui-se essa Moral de origem religiosa por uma cada vez maior cobrança por solidariedade entre cônjuges, ex-cônjuges ou entre pais e filhos, no campo do afeto, mas cuja infração geralmente implica algum tipo de contrapartida financeira.
Em paralelo, é observada a (b) tensão entre os campos publicista e privatista no Direito de Família, mas de uma forma inteiramente nova. Não é de agora que se tem afirmado a existência de uma publicização do Direito de Família, a ponto de alguns autores defenderem sua autonomia em relação ao Direito Civil. Essa tese bem que poderia ser verdadeira se não fosse uma igualmente curiosa restrição da incidência do Direito Público (e seus institutos) no casamento. Até aos anos 1990, divorciar-se ou separar-se era algo profundamente solene, com prazos, audiências de conciliação e de reflexão —para que os cônjuges avaliassem se realmente desejavam pôr termo a sua união —, presença obrigatória do Ministério Público, recurso de ofício, além de outras pequenas formalidades. Hoje, tudo isso mudou. O casamento e sua proteção deixaram de interessar ao Estado, ao menos nos níveis tão intensos do passado. Cada vez mais, a união de duas pessoas é algo privado, que pode ser constituída ou extinta por meio de atos negociais, inclusive com a dispensa do poder Judiciário — quando ausente o litígio ou o interesse de incapazes —, por meio das serventias cartoriais. A infidelidade não mais interessa ao Direito Penal e já se começa a defender que a bigamia deixe de ser crime. O campo da autodeterminação matrimonial é cada vez mais dilatado.
Assim como houve esse avanço da autodeterminação no casamento, para se manter o paralelismo com as tensões já mencionadas, observa-se hoje uma maior intervenção no modo como as pessoas gerenciam os efeitos patrimoniais da extinção do casamento — ou da sociedade conjugal, conforme o caso. São exemplos disso a questão dos alimentos compensatórios e da intervenção judicial no regime de separação convencional de bens. Os elementos tipicamente familiares da relação entre os cônjuges deixaram de interessar ao Estado e agora ganham cada vez mais importância os de caráter patrimonial ou de eficácia patrimonial indireta. Esse câmbio no eixo do Direito de Família está a merecer estudos mais aprofundados, até por se revelar paradoxal em face de um discurso de despatrimonialização do Direito Civil.
E é sobre os alimentos compensatórios sob a perspectiva do Direito estrangeiro de que se ocupará esta que é a terceira coluna da série (leia as duas colunas anteriores, a primeira aqui e a segunda aqui).
Inicie-se pelo Direito espanhol. Na semana seguinte, quando se encerrará a série, ver-se-á o Direito francês.
Alimentos compensatórios na EspanhaNo Código Civil espanhol, a matéria da “pensão compensatória” é objeto de seus artigos 97 a 101, que sofreram modificações recentes em 2005, graças à Lei 15/2005, de 8 de julho de 2005, em vigor desde 10 de julho de 2005.[1]
No art.97 do Código espanhol, está dito que se a separação ou o divórcio venha a produzir um “desequilíbrio econômico” de um cônjuge “em relação à posição do outro”, o qual implique “uma piora de sua situação anterior ao casamento”, o prejudicado terá direito a “uma compensação, que poderá consistir em uma pensão temporária ou por tempo indefinido, ou em uma prestação única, segundo o que se determine no acordo ou em sentença”. Se não houver acordo, o juiz determinará, na sentença, o valor da compensação, que “levará em conta as seguintes circunstâncias”: 1) os acordos a que tiverem chegado os cônjuges; 2) sua idade e seu estado de saúde; 3) sua qualificação profissional e sua empregabilidade; 4) sua dedicação anterior e futura à família; 5) seu trabalho e colaboração nas atividades empresárias, industriais ou profissionais do outro cônjuge; 6) a duração do matrimônio e da convivência conjugal; 7) a perda eventual de um direito de pensão; 8) o capital e os meios econômicos e as necessidades de um e outro cônjuge; 9) qualquer outra circunstância relevante. Na decisão judicial, fixar-se-ão as “bases para se atualizar a pensão e as garantias para sua efetividade”.[2]
No texto de 1981, afirmava-se que o cônjuge teria direito a uma pensão. Com a lei de 2005, passou-se a dizer que o direito recairia sobre uma “compensação”, que poderia assumir a natureza de pensão (temporária ou por tempo indeterminado) ou de uma prestação única.
A qualquer tempo, poder-se-á convencionar a substituição da pensão judicialmente fixada, nos termos do art. 97 do Código de Espanha, pela constituição de rendas vitalícias, o usufruto de determinados ou a transferência de um capital sob a forma de bens ou em dinheiro.[3] No entanto, se a pensão e suas bases de atualização houverem sido fixadas em sentença, só poderão ser modificadas supervenientemente “por alterações substanciais na fortuna de um ou de outro cônjuge”.[4]
Essa pensão, no Direito espanhol, não é perpétua, ainda que haja sido fixada por prazo indeterminado. Veja-se que são causas de sua extinção: a) haver cessado a causa que lhe deu origem; b) o credor passar a viver maritalmente ou casar com outra pessoa.[5]
O dever de pagar pensão pode-se transmitir aos herdeiros, dado que a morte do cônjuge solvens não é causa, por si só, de extinção de sua extinção. No entanto, seus herdeiros terão a legitimidade para requerer em juízo a redução ou a exoneração da pensão, se o acervo hereditário não puder satisfazer as necessidades criadas pela dívida ou se isso afetar seus direitos à legítima.[6]
Concluída a investigação sobre os aspectos puramente legais, é hora de se fazer anotações sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Espanha (equivalente ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro).
Desde a reforma que instituiu a pensão em 1981 e após a alteração legislativa de 2005, o Supremo Tribunal de Justiça tem firmado alguns parâmetros a esse direito advindo da extinção do casamento ou da sociedade conjugal[7]: a) a pensão não é um “mecanismo indenizatório”, muito menos um “mecanismo para equilibrar os patrimônios dos cônjuges (SSTS de 10 de fevereiro de 2005, 5 de novembro de 2008 e 10 de março de 2009)”; b) cuida-se, na verdade, de uma “prestação econômica em favor de um dos esposos e a cargo de outro”, cujo “reconhecimento exige basicamente a existência de uma situação de desequilíbrio ou desigualdade econômica entre os cônjuges ou ex-cônjuges”; c) a pensão tem natureza diversa dos alimentos ou de uma condenação de caráter ressarcitório. Assim, é possível cumulá-la com os alimentos, que são atribuídos por efeito da situação de necessidade em que se encontrava um dos cônjuges (com referência a precedente do Supremo Tribunal de 2 de dezembro de 1987); d) o juiz, ao apreciar casos envolvendo o pedido de pensão, deve responder a três questões: i) produziu-se desequilíbrio gerador de pensão compensatória?; ii) qual o valor da pensão a ser fixada?; iii) a pensão deve ser definitiva ou temporária?
Esse tríplice questionamento, conforme apontado na doutrina[8], significou uma mudança recente na orientação do Supremo Tribunal de Justiça, quanto aos critérios para reconhecimento do direito à pensão e de sua quantificação. Deixou-se de lado o critério objetivo, que se pautava pela simples observação da existência de um desequilíbrio entre os patrimônios dos cônjuges, causado pela cessação do vínculo entre eles, remetendo-se aos critérios dos incisos do artigo 97 do Código Civil para se definir valores e extensão temporal da pensão. O mais alto tribunal de direito ordinário de Espanha adotou um critério subjetivo, segundo o qual o juiz, ao apreciar o pedido de pensão, deve valorar os critérios do artigo 97, levando-se em conta também seus incisos, para definir se a pensão é devida, qual seu valor e até quando deverá ser paga. Cita-se como marco dessa alteração jurisprudencial a já mencionada STS de 19 de janeiro de 2010.
Em um julgado de 2009[9], o Supremo Tribunal de Justiça discutiu a aplicabilidade à doutrina dos atos próprios, invocada pelo cônjuge-varão contra o pedido de pensão pelo cônjuge-virago, que havia firmado pacto antenupcial com a seguinte cláusula: “Os gastos de cada um dos cônjuges, de qualquer tipo e em quaisquer circunstâncias, serão de encargo exclusivo de quem os produzir, sem possibilidade de repercussão alguma em face do outro ou de seus bens”. Segundo o recorrente, essa cláusula deixaria “patente a vontade de ambos os cônjuges de se desvincular totalmente do outro no plano econômico, o que, em suma, suporia uma renúncia da esposa e um impedimento na hora de se postular a pensão que, em que pese a isso, lhe foi reconhecida”. No acórdão, afastou-se essa tese, sob o color de que: a) a cláusula foi firmada em um negócio preliminar, dependente de circunstâncias futuras, fortuitas e impossíveis de serem predicadas em um documento como o pacto antenupcial; b) a existência de desequilíbrio futuro não teria como ser objeto de parâmetros no pacto. Esta é, porém, uma matéria ainda insegura no Direito espanhol, na medida em que se encontram acórdãos reconhecendo a força das cláusulas antenupciais, ressalvando sua desconsideração para casos de vícios de consentimento.[10]
A mudança legislativa de 2005 introduziu a possibilidade de limitação temporal das pensões compensatórias. Essa alteração resultou da experiência pretoriana, que há muito vinha admitindo a fixação de prazo para as pensões.[11]
Na próxima coluna, ver-se-ão outras experiências no Direito estrangeiro.

[1] Todos os textos em espanhol foram traduzidos pelo colunista.
[2] Redação original modificada pelo art.1º da Lei 30/1981, de 7/7/1981, e, posteriormente, pelo art.1.9 da Lei 15/2005, de 8/7/2005.
[3] Art. 99, com a redação alterada pela Lei 30/1981, de 7/7/1981.
[4] Art.100, com a redação alterada pela Lei 30/1981, de 7/7/1981.
[5] Art.101, primeira parte, com a redação alterada pela Lei 30/1981, de 7/7/1981.
[6] Art.101, parte final, com a redação alterada pela Lei 30/1981, de 7/7/1981.
[7] STS 864/2010, de Pleno de 19/1/2010.
[8] Campo Izquierdo, Ángel Luis. La pensión compensatória. Boletín Derecho de Familia. Nov. 2011.
[9] STS 1130/2009, de 10/3/2009.
[10] STS de 9/2/2010.
[11] No Supremo Tribunal de Justiça, assim se reconheceu em definitivo na STS de 14/10/2008, quando se apreciou um caso oriundo do regime legal anterior a 2005.

Alimentos compensatórios no Brasil e no exterior (parte 4)

A série de colunas sobre o polêmico tema dos “alimentos compensatórios” chega ao fim. Após o exame da questão na jurisprudência do STJ, na doutrina brasileira e no Direito espanhol, apresenta-se ao leitor a experiência de outros ordenamentos jurídicos, como o francês.
O Código Napoleão, em seu art. 270, com a redação dada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004, afirma que o divórcio põe termo ao dever de assistência entre os cônjuges — primeira parte. Sendo certo que um dos cônjuges, em relação ao outro, pode ser obrigado a “uma prestação destinada a compensar, tanto quanto seja possível, a disparidade”, criada pela ruptura do matrimônio, “nas respectivas condições de vida”. Essa prestação terá o caráter de um forfait e terá a forma de um capital, cujo valor será fixado judicialmente — segunda parte. Ressalva-se que o juiz poderá se recusar a atribuir essa prestação sob o fundamento da equidade, considerados os critérios do art. 271, ou quando houver sido caracterizada a culpa exclusiva do cônjuge que pretenda a prestação compensatória, observadas as condições particulares da ruptura do casamento — terceira parte.
A constituição desse capital poderá ser feita por meio de: a) um pagamento em dinheiro, subordinado à prestação de garantias previstas no art. 277[1] do Código Civil francês;[2] b) instituição de direitos reais ou direitos temporários — propriedade, uso, habitação, usufruto — em favor do cônjuge, podendo o juiz proceder à cessão forçada desses direitos. É, no entanto, necessária a anuência do cônjuge-devedor, quando esses direitos forem advindos de doação ou herança.[3] Quanto ao item (b), esse dispositivo foi submetido ao Conselho Constitucional de França, que se manifestou por sua conformidade à Constituição, nos termos do acórdão 2011-151 QPC, de 13 de julho de 2011.
A despeito de o art. 270 mencionar que a prestação terá a forma de um “capital”, o art. 275 — alterado pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004 — admite que o juiz fixe seu pagamento em parcelas periódicas, no prazo máximo de até oito anos, indexadas conforme as pensões alimentícias. Só será possível assim o determinar se ficar comprovado que a constituição imediata do capital é impossível ao devedor. A qualquer momento, o cônjuge-devedor poderá liquidar o saldo remanescente do capital a ser integralizado.
Ainda segundo o art. 275, segunda parte, o cônjuge-devedor pode requerer a revisão das condições de pagamento, em caso de alteração significativa de sua situação. No art. 276, abrem-se as possibilidades para que, a título excepcional e por meio de decisão especialmente motivada, o juiz fixe a prestação compensatória sob a forma de uma renda anual.[4] É necessário que o magistrado, além das regras do art. 271, leve em consideração a idade e a saúde do devedor. Mais amplamente, o art.276-3[5] prevê hipóteses de revisão, modificação ou suspensão da prestação compensatória, constituída sob a forma de renda, em caso de alteração relevante dos recursos ou da necessidade de qualquer das partes. Veda-se, no entanto, a revisão da renda para um montante superior ao disposto inicialmente pelo juiz em sentença.
À semelhança do Código Civil espanhol, seu homólogo francês estabelece, no art. 271 — com a redação dada pela Lei 2010-1330, de 9 de novembro de 2010 —, os critérios para a fixação da “prestação compensatória” (prestation compensatoire). Tomar-se-á em consideração, como critérios gerais, a necessidade do cônjuge-credor e os meios do cônjuge-devedor, no momento do divórcio, mas com possibilidade de alteração em razão das circunstâncias previsíveis do futuro. Para essa finalidade, deverá o juiz levar em conta, nomeadamente: 1) a duração do casamento; 2) a idade e a saúde dos cônjuges; 3) sua qualificação e situação profissionais; 4) as consequências das escolhas profissionais feitas por um dos cônjuges, durante a vida em comum, para a educação dos filhos ou para favorecer a carreira de um dos cônjuges em detrimento da sua; 5) o patrimônio estimado ou previsível dos cônjuges, tanto em capital quanto em rendas, após a liquidação do regime de bens; 6) seus direitos existentes e previsíveis. Considerado o item 6, deve-se também apreciar (7) a relação entre as pensões existentes, sua redução potencial e o impacto da prestação compensatória nesse regime, de par com as circunstâncias referidas no item 6.
Permite-se que, no caso de divórcio por mútuo consentimento, os cônjuges determinem o valor e as condições da prestação compensatória no próprio acordo a ser submetido à homologação judicial. É lícito incluir cláusula que condicione resolutiva do pagamento ante a ocorrência de determinado evento. Admite-se, ainda, que a prestação seja oferecida sob a forma de uma renda com prazo de duração limitado. Se as partes convencionarem cláusulas ofensivas à equânime atribuição de direitos e obrigações entre os cônjuges, o juiz recusar-se-á a homologar o acordo.[6]
Uma vez homologado o acordo, ele terá força executória de uma sentença judicial. Sua modificação ulterior só se dará por meio de novo acordo entre os ex-cônjuges, a ser também homologado pelo juiz. Faculta-se a inclusão de cláusula revisional, na hipótese de sobrevirem alterações relevantes nas necessidades e nos meios econômicos dos cônjuges. Nesse caso, caberá ao juiz apreciar a revisão da prestação compensatória, levando-se em conta os arts. 275, 276-3 e 2764, além dos arts. 280 e 280-2, quanto a estes últimos, ressalvada disposição particular do acordo.[7]
Os efeitos da morte sobre o dever de prestação compensatória estão definidos no art. 280[8] do Código Civil francês: a) dá-se sua transferência para o espólio e caberá aos herdeiros pagá-la, desde que não ultrapasse as forças da herança. Os herdeiros não têm responsabilidade pessoal. Se não houver como se pagar a prestação, os legatários, de modo proporcional, poderão ser convocados a fazê-lo com parte de seus legados. Se a prestação foi fixada sob a forma de um capital pagável nas condições do art. 275, a morte do devedor implica o direito ao pagamento imediato.
Na jurisprudência francesa, especialmente nos acórdãos da Corte de Cassação, o mais alto órgão da magistratura em França, como esse tribunal orgulhosamente se autoproclama, há um número bem razoável de casos envolvendo as prestações compensatórias. Veja-se uma síntese dos principais resultados: a) não se confunde com a alteração significativa das condições relativas aos recursos e às necessidades das partes a omissão de rendimentos, quando do divórcio. É inviável rever ou suprimir a prestação compensatória sob esse exclusivo fundamento[9]; b) no cálculo da prestação compensatória não se pode utilizar o tempo de coabitação anterior ao casamento como critério exclusivo para esse fim[10]; c) o afastamento de um dos cônjuges do trabalho, logo após o nascimento do primeiro filho, é causa relevante na definição do dever de prestar e na quantificação do valor a ser pago a título de compensação[11]; d) o momento do divórcio é o marco decisivo para se aferir a ocorrência da disparidade econômica entre os cônjuges.[12]
Não apenas em Espanha e França existem normas sobre os ditos “alimentos compensatórios”. As normas civis do Uruguai e do Chile também regularam essa matéria.
No Direito chileno, as mudanças introduzidas em 2004 na Lei de Matrimônio instituíram um “regime de compensação econômica” para a hipótese de um dos cônjuges haver-se dedicado aos trabalhos domésticos e aos cuidados com a prole, enquanto o outro desenvolveu uma atividade remunerada ou lucrativa durante o casamento. Caberá o juiz, à falta de acordo entre os cônjuges, a fixação de uma “compensação” ao necessitado, sob a forma de um capital ou de quotas reajustáveis, ou, ainda, por meio de ações, bens e direitos de usufruto, habitação e uso.
No Uruguai, há uma prejudicial confusão legislativa entre o dever de alimentos e o que se denomina de “prestação compensatória” no Direito francês. O art. 183 do Código Civil uruguaio afirma que o marido fica sempre obrigado a contribuir para a adequada e decente manutenção da mulher não culpada (pela separação). E assim o fará por meio de uma “pensão alimentícia”, cominada em atenção às “faculdades do obrigado e as necessidades da mulher, de maneira que esta conserve, tanto quanto possível, a posição que detinha durante o matrimônio”. Esse dever cessará desde o momento em que a mulher passe a levar “una vida desarreglada”.
É chegado o momento de concluir. O surgimento do debate sobre os “alimentos compensatórios” no Brasil em muito se deve à contribuição doutrinária, figurando Zeno Veloso como um dos nomes centrais para o surgimento da tese[13], e, posteriormente, a seu debate na jurisprudência, de modo especial no Superior Tribunal de Justiça, graças aos votos de Carlos Alberto Menezes Direito, Sidnei Benetti e Antonio Carlos Ferreira.
(i) A diferenciação entre os “alimentos compensatórios” e os “alimentos civis” merece ser sistematizada. Um grande contributo para que se estremem esses conceitos é o abandono do substantivo “alimentos” em favor de outros menos suscetíveis a confusões terminológicas, como “prestações” ou “compensações”. (ii) Outro ponto que merece exame é a distinção entre o que vem a ser o resultado da partilha, os frutos da partilha e a própria função dos alimentos civis no processo de extinção da sociedade conjugal ou do matrimônio. Em muitos casos, essas funções são objeto de indevida miscelânea, deixando sem valor as elaboradas construções dogmáticas (tão antigas quanto respeitáveis). Mais que uma preocupação científica, que por si mesma já se bastaria, é também de se considerar o problema do respeito à autodeterminação, que está presente quando os nubentes decidem celebrar um pacto antenupcial, e da previsibilidade dos efeitos de tais arranjos. (iii) Quem se cercou das reservas de um pacto matrimonial, com os custos emocionais que lhes são inerentes, poderá ter suas cautelas postas por terra em face de uma decisão judicial que lhe condene a pagar “alimentos compensatórios”, muita vez sob o color de substituir um regime (querido) de separação convencional por outro de comunhão parcial. (iv) Finalmente, há o problema da ausência de previsão legal para essa verba compensatória. Nos países mencionados — Espanha, França, Uruguai e Chile —, houve reformas legislativas prévias ao reconhecimento oficial desse direito. Mas, diante das questões anteriormente suscitadas (i, ii e iii), esse problema cede ante a necessidade de um maior diálogo entre a doutrina e os tribunais, a fim de que se evite a transformação dos alimentos em uma figura de tal plasticidade que se torne irreconhecível seu perfil dogmático. Os doutrinadores devem aprofundar essa discussão, até para que consigam cooperar com os tribunais no exame reflexivo de um tema tão atual.

[1] O art. 277, com a redação dada pela Lei 2000-596, de 30 de junho de 2000, afirma que o juiz pode impor ao cônjuge-devedor, independentemente de hipoteca legal ou judicial, a constituição de uma garantia, a dação de uma caução ou a assinatura de um contrato de garantia ao pagamento da renda ou do capital.
[2] Item 1o do art. 274, com a redação modificada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[3] Item 2o do art. 274, com a redação modificada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[4] O art. 276 teve sua redação alterada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[5] Com a redação dada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[6] Art. 278, com a redação dada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[7] Paráfrase do art. 279, cuja redação atual decorre da Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[8] Com a redação dada pela Lei 2004-439, de 26 de maio de 2004.
[9] Arrêt n° 983 du 4 novembre 2010 (09-14.712) - Cour de cassation - Première chambre civile.
[10] Arrêt n° 865 du 6 octobre 2010 (09-12.718) - Cour de cassation - Première chambre civile.
[11] Arrêt n° 377 du 31 mars 2010 (09-13.811) - Cour de cassation - Première chambre civile.
[12] Arrêt n° 208 du 15 février 2012 (11-14.187) - Cour de cassation - Première chambre civile.
[13] Recomenda-se a leitura de: VELOSO, Zeno. Deveres dos cônjuges: responsabilidade civil. In. CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; SIMÃO, José Fernando; FUJITA, Jorge Shiguemitsu; ZUCCHI, Maria Cristina (Orgs). Direito de família no novo milênio: estudos em homenagem ao professor Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010.
fonte-http://www.conjur.com.br/2014-fev-05/direito-comparado-alimentos-compensatorios-brasil-exterior-parte