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sábado, 20 de junho de 2015

Afeto e proteção: via de duas mãos


A imagem congelou na minha mente e certamente na de todos que a viram. Um menino com quatro anos de idade envolve com seu corpo, num abraço intenso, a irmãzinha com aproximadamente dois anos de idade. A legenda apenas os identifica como vítimas da tragédia do Nepal. Nada mais precisaria referir, pois qualquer outra informação seria desnecessária. O instinto de proteção e de sobrevivência bem como o afeto ali se encontra retratado, são sentimentos que transbordam pela simples visão.
O que pode levar uma criança de apenas quatro anos se sentir responsável pela segurança de outra criança de dois anos? A responsabilidade e a solidariedade seriam inerentes aos seres humanos? Se assim o forem poderiam se perder no decorrer da vida? Somente a convivência familiar é capaz de criar essa ligação tão profunda.
As relações que se estabelecem através da convivência diuturna faz com que essas cenas sejam possíveis. Proteção, segurança, cuidado é que se espera entre aqueles que cultivam mútuo afeto. Esse é o papel da família, é tudo o que se espera nas relações entre pessoas que participam de uma comunhão de vida.
Numa ocasião, ao falar sobre a história da adoção para meus alunos, destacava que, ao contrário da função social que hoje ela tem, o seu objetivo prioritário era dar filhos a quem não os podia ter, pois a preocupação com a descendência sempre foi inerente ao ser humano, até mesmo pelo necessário amparo em sua velhice. Notei expressões de surpresa e mesmo de repúdio no rosto daqueles jovens, como se essa necessidade fosse algo condenável. No entanto, por que esse não pode ser um dos objetivos de ter filhos? Por que o ser humano deve ser sempre responsável pela nova geração e ser abandonado na sua velhice? Amar também é cuidar e proteger, e essa proteção devem ser uma via de duas mãos. Esse é o sentido da família. Sentido de troca, de compartilhamento, entre todas as gerações.

Envolvida com uma brincadeira com meu neto, hoje com quatro anos de idade, ele pareceu admirado com minha participação, e exclamou: Vovó tu és minha amiga de mais idade... No início não entendi exatamente o que ele quis referir, e perguntei: E você, que tipo de amigo é para mim? Ele respondeu:  Sou teu amigo de “média” idade.. se eu  tivesse dois anos, seria teu amigo de “pouca “ idade”.  Não sei exatamente qual o sentido que ele dá para essa “idade”, mas percebi que o tempo entre as pessoas que se amam é diferente, pois o afeto o relativiza. Hoje penso ser a “protetora” de meu amigo de “média” idade, mas talvez, daqui a algum tempo, ele passe a ser meu protetor.  Assim o espero.. ter direito de integrar e participar dessa família que ajudei a formar até os fins de meus dias, mesmo que seja para ser protegida simplesmente através de um abraço intenso, por alguém que se sinta responsável por mim...
(publicado- Diário de Santa Maria: 20/05/2015)

sábado, 6 de junho de 2015

Habeas corpus em favor de uma Menina Triste

EXCELENTÍSSIMO SR(A) DR(A) JUIZ(A) DE DIREITO DA VARA DE INFÂNCIA E JUVENTUDE DESTA COMARCA 

ANJO DA GUARDA CELESTIAL, missioneiro da paz e protetor das crianças, vem, respeitosamente, submeter a esse juízo a presente ação constitucional de HABEAS CORPUS, em favor de MENINA TRISTE, brasileira, menor impúbere, filha de pais divorciados, residente e domiciliada nesta comarca, face a mesma estar sofrendo CONSTRANGIMENTO ILEGAL e CERCEAMENTO DE SUA LIBERDADE, pelos fatos e fundamentos que seguem: 

- Os pais da paciente divorciaram-se no mês passado, tendo sido sua guarda deferida à genitora, com direito de visitação paterna nos finais de semana alternados, iniciando-se no sábado, às 09h00 da manhã, e devolução aos domingos, às 21h00. Todas as quartas-feiras, ainda, o genitor poderá estabelecer contato telefônico, que não poderá ultrapassar o tempo de trinta minutos, no horário das 20h. 
 - Em ação movida pelos avós paternos da paciente, foi estabelecido por sentença que, no final de semana em que não ocorrer a visitação paterna, haverá a visitação dos avós, iniciando-se aos domingos, às 09h00 da manhã, e devolução às 17h00 de mesmo dia. Como os avós não residem neste Município, a visitação deverá ser no Shopping Center, onde a criança será entregue pela genitora e buscada no mesmo local.
 - Ocorre que a paciente estuda em escola de turno integral, além de ter outros compromissos que visam o aperfeiçoamento de sua educação no decorrer da semana. Normalmente apenas consegue cessar sua rotina de atividades às 10h da noite, quando sempre está exausta para qualquer brincadeira ou lazer livre. Tais compromissos têm horários definidos, e faz com que a criança passe todos seus momentos a mercê do relógio.
 - Quando está usufruindo da visitação paterna, muitas vezes gostaria de passar maior tempo em sua companhia, ou mesmo passar a noite no quarto que lhe está reservado na sua residência, porém, independente da atividade que está fazendo, ou de como está se sentindo, no horário definido, deve retornar. Por outro lado, o mesmo ocorre em finais de semana onde existem atividades mais interessantes do que ir para a residência do pai, no entanto o genitor não abre mão de seu direito, eis que este é limitado a períodos quinzenais.
 -Muitas vezes, em razão do cansaço, já se encontra dormindo quando o pai, nas quartas-feiras, lhe chama ao telefone, mesmo assim o atende para não lhe magoar. Também, em outras oportunidades, a paciente encontra-se em agradável conversa com o pai no telefone, mas o tempo estipulado vence, e a ligação é interrompida para que a decisão judicial não seja descumprida. -Com relação à visitação dos avós o mesmo ocorre. A menina gostaria de ter outras atividades prazerosas, que não apenas os momentos no Shopping nos domingos marcados. Apesar de “adorar” a companhia dos avós, gostaria de tê-los consigo de forma mais livre e em locais mais aprazíveis e naturais. 
- A Constituição Brasileira traz como princípio básico a liberdade, além da observância do melhor interesse da criança e do adolescente. A Declaração Universal do Direito das Crianças da UNICEF lhe garante o direito de uma proteção integral, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade (princípio II). 
- Além disso, a Lei 13.958/2014 determina que a guarda compartilhada seja a regra geral, sendo que, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos. 

Ante o exposto, a paciente MENINA TRISTE está tendo cerceada sua liberdade de ir e vir, além de estar sofrendo evidente constrangimento ilegal, sendo vítima de flagrante desrespeito às leis e convenções internacionais. Assim, requer seja deferida a ordem impetrada, a fim de que a paciente possa usufruir de sua liberdade e de seu direito de ser simplesmente criança, modificando-se inclusive sua identificação para MENINA FELIZ.
 Nestes termos 
Pede deferimento

domingo, 29 de março de 2015

Em nome de Bernardo...

O caso Boldrini, que chocou o Brasil, pode despertar uma grande indignação se o pai do menino for inocentado pelo crime de homicídio. Ocorre que ele é seu herdeiro direto e a legislação brasileira prevê a exclusão do direito à herança apenas em casos específicos. São eles: crime de homicídio, crimes contra a honra e contra a liberdade de testar. Essa restrição aos casos de indignidade de herdeiro é criticada pelos operadores do direito, mas somente é lembrada quando crimes que causam comoção social vêm à tona. Como exemplo, tem-se o fato ocorrido em 2002, em São Paulo, quando Suzane Von Richthofen foi condenada pelo homicídio de seus pais. Tal crime estimulou a proposta legislativa, ainda em tramitação, de que a exclusão da herança passasse a ser um efeito da sentença penal, e não ficasse na dependência da ação cível por iniciativa dos interessados, como ainda vigora. O abandono afetivo, a indiferença e a falta de cuidados paternos, evidenciada claramente no fato, não é incluída como causa de exclusão de herança, por mais que isso traga uma grande indignação social. Nossos parlamentares devem buscar resolver essas omissões legislativas, causadoras de um sentimento de absoluta injustiça. Deve-se ainda referir que esse caso concreto é uma exceção, pois a herança deixada por descendentes para seus ascendentes é rara. Porém, o mesmo abandono afetivo e indiferença são rotineiros quando se trata da relação inversa, ou seja, quando os pais, já idosos e vulneráveis, são abandonados pelos seus filhos. Essa realidade é muito mais comum, atingindo várias famílias. No entanto, no momento da morte, a direito à herança é pleiteado com ênfase, afinal é um direito constitucional. Porém, mesmo que tal reforma venha a se concretizar, inserindo-se o abandono afetivo como causa de indignidade, essa mudança não atingirá a herança de Bernardo, porque a legislação aplicável será àquela em vigor no dia de sua morte. Que a lei venha então em seu nome e em sua homenagem, para que aqueles que têm o dever de cuidado com seus familiares sofram a consequência de seus atos: a perda patrimonial traduzida pela exclusão da herança.

O menino e a baleia

Dia de sol na beira da lagoa. Lugar perfeito para uma brincadeira com bola. Meu netinho, já cansado dos adultos, anseia por um companheiro de sua idade para brincar. Chega um rapaz acompanhado pelo seu filho, com quatro ou cinco anos de idade. Meu neto, imediatamente vai ao seu encontro oferecendo a bola, que o menino aceita imediatamente. As crianças começam a brincar, enquanto o pai da criança se acomoda em um banco, serve-se de um chimarrão e começa a mexer em seu celular. Enquanto escuta músicas antigas, parece telefonar ou mandar mensagens. De longe acompanhamos a brincadeira das crianças, que tem o mesmo porte físico. A brincadeira evolui, mas a habilidade futebolística do menino chama a atenção. Parece ter nascido para ser jogador de futebol. Brinca com a bola todo o tempo, dribla meu netinho, faz piruetas, e não quer soltar a bola. Sua destreza nos chama a atenção, a ponto de brincarmos que poderia ser contratado por qualquer clube desde essa idade. De forma disfarçada, observo o pai da criança. Pela minha experiência, como advogada na área de Direito de Família, imagino que seja um pai divorciado, exercendo o direito de visitas ou a partilha de férias com seu filho. Deduzo isso pela sua inexperiência, tanto pela forma de como a criança está vestida, bem como pelo seu despreparo em nada levar ao “passeio” para atender as necessidades da criança. Não tarda muito e o menino vem nos pedir água “bem geladinha”. As horas passam e esse pai em momento algum levanta seus olhos do aparelho celular. Deve ouvir os gritos e as risadas das crianças, mas não vê nenhuma das jogadas do filho, nem percebe que várias pessoas admiram o futebol do filho. Após algum tempo, guarda a cuia de chimarrão, desliga o celular e se levanta do banco. Olha ao redor e chama o filho para ir embora. A criança resiste e, então, nos aproximamos para conversar. Ao falarmos sobre o gosto pelo futebol e pelas habilidades demonstradas pela criança, o pai parece surpreso e responde que “ele nem joga muito”. Agradece e se despede. A criança vai embora de mãos dadas com o pai. Ao longe, se vira e nos acena com um sorriso no rosto. O pai segue caminhando e retoma o celular na mão. Lembrei então de uma cena que vi recentemente na INTERNET: um fotógrafo flagra um rapaz a bordo de um barco, cabeça baixa, totalmente absorto com seu aparelho celular. Ao seu lado aparece, emergindo das águas uma baleia lindíssima, seu enorme corpo negro brilha com a luz do sol, e ela desaparece novamente no mar. O rapaz não a vê, nem sequer nota que foi fotografado, continua ocupado em seu mundo virtual.