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sábado, 19 de março de 2016

FILIAÇÃO E MULTIPARENTALIDADE: (MULTI)POSSIBILIDADE DE AFETO

FILIAÇÃO E MULTIPARENTALIDADE: (MULTI)POSSIBILIDADE DE AFETO

Bernadete Schleder dos Santos[1]
Daliana Schmidt[2]
Maurício da Costa Vidal[3]

1.        DA (NOVA) CONFIGURAÇÃO DE FAMÍLIA
Até o advento da Constituição Federal de 1988, o conceito jurídico de família era extremamente limitado e taxativo, pois o Código Civil de 1916 somente conferira o status familiae àqueles agrupamentos oriundos do casamento válido e eficaz, não admitindo qualquer outra forma de arranjo familiar. A antiga legislação impedia a dissolução do casamento, impunha um caráter patriarcal e patrimonial nas relações familiares, além de discriminar qualquer outra forma de união que não fosse pelo matrimônio, bem como da prole que desta viesse a surgir.
A Constituição Federal de 1988 desconstituiu a ideologia matrimonialista e, atendendo à evolução social, trouxe significativas inovações no âmbito familiar, a ponto de alterar o paradigma de família até então vigente. Ganha espaço no cenário jurídico, novas e democráticas estruturas familiares, tais como as uniões estáveis, a família monoparental, a igualdade jurídica dos filhos (havidos ou não do casamento, ou por adoção).
Sabe-se que a família é a base da organização social do Estado e as relações familiares são reflexos da realidade social e cultural que se encontram em constante mutação.
Nesse cenário de efetivas mudanças sociais, os relacionamentos conjugais e as uniões estáveis passaram a apresentar uma nova dinâmica. A possibilidade do divórcio e da dissolução da união estável fez com que surgisse uma nova reorganização familiar, a qual se denomina de família reconstituída.
Apesar de a Carta Maior ter trazido inovações no direito de família, especialmente, em reconhecer outros tipos de entidades familiares, os modelos de família atualmente existentes na sociedade contemporânea vão além dos tipos nela reconhecidos[4].
Nesse sentido, as relações pessoais, dentro dos novos arranjos familiares não mais obedecem a um modelo pré-concebido, com papéis previamente definidos. A função exercida por cada membro passa a caracterizar a nova família, que assim se despe das amarras institucionais da antiga sacralidade, imposta pela família patriarcal. As novas entidades surgem não apenas através do casamento, mas, principalmente de uma união oriunda do afeto, não importando se constituídas de sexos distintos ou do mesmo sexo, tendo elas filhos ou não. A nova família não mais está ligada apenas pelo elemento biológico, mas aos vínculos psicológicos do afeto[5].
O reconhecimento das novas (re)formulações de famílias que não mais seguem o protótipo tradicional, efetiva o mais elementar dos princípios, o princípio da dignidade da pessoa humana. Sua essência é difícil de ser capturada em palavras, mas pode ser identificada como um princípio da manifestação dos valores constitucionais, carregado de sentimentos e emoções, consagrando a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional[6].
E é na família que a dignidade da pessoa vai se fortalecer, especialmente, em cada um dos seus membros, fundamentando-se na ordem constitucional para tanto.

A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum -, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada indivíduo com base em ideias pluralistas, solidaristas, democráticas e humanistas[7].

Com o reconhecimento do afeto como valor jurídico e a afetividade como um dos princípios fundamentais do direito de família, há uma quebra de paradigmas, considerando que a consanguinidade não é mais o único fator que identifica as relações familiares. A família-instituição dá lugar a uma família-instrumental, promotora de bem-estar e realização de seus membros, através da plena comunhão de vida.
O vínculo afetivo surge como elemento fundamental para formação e reconhecimento de novas modalidades familiares que merecem ampla tutela por parte do Estado. Deste modo, diz-se que as relações da consanguinidade perdem espaço, dando lugar para aquelas formadas pelos laços de afetividade e convivência familiar. [8]
Nesse cenário, o Direito de Família vai se adaptando às mudanças impostas pelo novo paradigma, sendo que especialmente o tema filiação passa a ter novos conceitos e caracterizações.

2.        DA FILIAÇÃO
O conceito de filiação sofreu profundas modificações ao longo do tempo[9]. No Brasil, em especial, nas últimas décadas. Desde um conceito puramente biológico, aliado a (i)legitimidade do filho, a filiação adulterina e a filiação adotiva, evoluindo-se em seguida para a igualdade de filiação, a filiação socioafetiva, culminando, nos atuais dias, com o reconhecimento da multiparentalidade. Registre-se que, se o conceito de filiação sofreu mutações, consequentemente o conceito de paternidade e maternidade da mesma forma se sujeitou à imperiosa evolução jurídico-social.
Para que se possa compreender com melhor clareza a referida evolução, necessário se faz clarear – ainda que brevemente – os “tortuosos” caminhos pelos quais o conceito de filiação percorreu, até se estabelecer com a relativa segurança que hoje desfruta.

2.1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FILIAÇÃO NO “DIREITO BRASILEIRO”[10]
Ainda sob a égide do extinto Código Civil de 1916, a doutrina da época, conceituava filiação como sendo “a relação jurídica provocada pela geração de uma nova vida. É, em outros termos, o fato natural da procriação juridicamente considerado”[11]. Autores ilustres como Washington Monteiro de Barros[12] e Silvio Rodrigues[13], acompanham o aludido conceito com particularidades que lhes são próprias, sem, contudo, diferir em conteúdo, que, basicamente, centra-se na ideia de que a relação paterno-materno-filial estrutura-se unicamente no conceito genético[14], independente de como ocorreu o processo: se de forma natural ou artificial[15]. Aqui não há qual espaço para o afeto.
O revogado Diploma Civil contemplava quatro espécies de filiação, quais sejam: a filiação legítima, a ilegítima, a legitimada e a adotiva.
Filho legítimo era aquele havido na constância do casamento, ou nas hipóteses de presunção de paternidade[16]. Em sentido diametralmente oposto, filiação ilegítima era aquela fruto de relações adulterinas ou incestuosas, assim como daquela em que não houve casamento entre os pais. Esta última admitia o reconhecimento da filiação, ao passo que no primeiro caso era impossível o reconhecimento (voluntário ou forçado), sendo a prole impedida de concorrer à sucessão hereditária e aos alimentos. Por filhos legitimados entendiam-se aqueles que precediam o casamento dos pais ou eram o resultado deste, e eram, por sua vez, equiparados aos filhos legítimos. A filiação adotiva, “remédio consolatório dos que não têm filhos”[17], inicialmente se limitava ao parentesco, não se extinguindo os direitos e deveres decorrentes do parentesco biológico, transferindo-se, excepcionalmente, o pátrio poder. Somente em 1979, com a Lei 6.697, é que os filhos adotados foram equiparados aos filhos legítimos.
Em 1988, a Constituição Federal, em seu art. 227, § 6º[18], “lançou uma pá de cal” sobre as discriminações atinentes à filiação, na feliz expressão de Cristiano Farias e Nelson Rosenvald[19]. O Texto Magno colocou todos os filhos em “pé de igualdade”, como consectário lógico do princípio da dignidade humana (art. 1º, inciso III). Portanto, não há mais espaço no cenário jurídico para quaisquer das discriminações erigidas pelo Código Civil de 1916, inclusive contra qualquer resquício da (i)legitimidade dos filhos e do adoção.
A partir de uma leitura constitucional do Direito Privado e, em especial, do Direito de Família, passou-se a valorizar a convivência entre pais e filhos, garantindo-se valor jurídico ao afeto. Não é possível que uma decisão judicial, por mais erudita e bem fundamentada que seja, desconstitua anos de convivência. Surge então o conceito de filiação socioafetiva, muito bem apresentado pelos renomados autores Cristiano Farias e Nelson Rosenvald:

A filiação socioafetiva não está lastreada no nascimento (fato biológico), mas em ato de vontade, cimentada, cotidianamente, no tratamento e na publicidade, colocando-se em xeque, a um só tempo, a verdade biológica e as presunções jurídicas. Socioafetiva é aquela filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em mão-dupla como pai e filho, inabalável na certeza de que aquelas pessoas, de fato, são pai e filho[20].

Logo, reformula-se o conceito de filiação, agora não mais lastreado única e puramente em critério genéticos, mas também no critério afetivo, que é forte o suficiente para estabelecer o vínculo filiatório onde não está presente o vínculo biológico. Rolf Madaleno, com propriedade, assevera que

O real valor jurídico está na verdade afetiva e jamais sustentada na ascendência genética, porque essa, quando desligada do afeto e da convivência, apenas representa um efeito da natureza, quase sempre fruto de um indesejado acaso, obra de um indesejado descuido e da pronta rejeição. Não podem ser considerados genitores pessoas que nunca quiseram exercer as funções de pai e mãe, e sob todos os modos e ações se desvinculam dos efeitos sociais, morais pessoais e materiais da relação natural da filiação[21].

Os conceitos de pai e mãe, por sua vez, passam a ser revistos. Pai não é mais “aquele que empresta seu nome na certidão de nascimento”, mas sim, “constitui muito mais uma função, ou mesmo uma metáfora, do que propriamente uma relação biológica”[22], assim como o papel da mãe, que não se constitui exclusivamente no critério biológico, mas sim na função exercida e no papel que o gênero feminino representa[23].
Logo, à luz do novo Direito das Famílias, pode-se conceituar filiação como sendo a relação jurídica existente entre ascendentes e descentes, em linha reta de primeiro grau, constituída pelo vínculo biológico, afetivo ou adotivo, que confere ao descendente determinada carga hereditária; e, como consectário da filiação, a efetivação dos princípios constitucionais atinentes à dignidade humana.
Ante a evolução do conceito de filiação e das novas formas de família, um novo capítulo da filiação se inicia com o reconhecimento da multiparentalidade, a partir de decisões judiciais inovadores. Isto é, possibilidade de reconhecimento de múltiplos pais e mães para determinada pessoa.

3.    MULTIPARENTALIDADE E POSSIBILIDADE JURÍDICA
Com a evolução do Direito das Famílias, o afeto ganhou valor jurídico. Como já demonstrado, a filiação é muito mais do que (um simples) registro. É um fato complexo.
A multiparentalidade é fenômeno recente na seara familiarista, que confere a possibilidade de determinada pessoa cumular em seu registro de nascimento, múltiplos pais e múltiplas mães. A guisa de estudo semântico-jurídico, registro de multimaternidade é a possibilidade constar mais de uma mãe em uma certidão de nascimento. Multipaternidade, por sua vez, é a possibilidade da cumulação de mais de um pai registral. Pluripaternidade seria a possibilidade de cumulação de múltiplos pais e mães no mesmo registro de nascimentos.
Por mais incomum que pareça a primeira vista, tal fenômeno ocorre com frequência no cotidiano das famílias. Casos de famílias recompostas, em que o cônjuge “assume como seu” o filho do primeiro matrimônio de seu parceiro(a), emergindo dessa relação uma posse de estado de filho e toda a relação de afeto daí decorrente, pode ser citado como típico caso de multiparentalidade. A diferença fundamental reside no sentido de que o termo multiparentalidade é geralmente empregado quando há o efetivo registro, isto é, quando ganha-se valor jurídico, logo, pode ser melhor conceituado como multiparentalidade registral.
Em que pese não existir previsão legal nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, já se manifestou a respeito em acórdão paradigmático:

MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido.
(...)
Pelo exposto, DÁ-SE PROVIMENTO ao recurso para declarar-se a maternidade socioafetiva de Vivian Medina Guardia em relação a Augusto Bazanelli Guardia, que deve constar do assento de nascimento, sem prejuízo e concomitantemente com a maternidade biológica.[24]

Pode-se asseverar que a multiparentalidade é fenômeno mais recente no campo da filiação, resultado da evolução e das conquistas históricas do direito de filiação. O reconhecimento de multiparentalidade estende efeitos jurídicos a uma situação fática consolidada, possibilitando a cumulação de registros de múltiplos pais ou mães em determinado registro de nascimento. Emergem questões relevantes que merecem ser estudas, com o número de genitores que podem constar em um registro de nascimento. A legislação é omissa, assim como a jurisprudência não teve oportunidade de manifestar a respeito. Entretanto, pelas decisões já proferidas, tem-se visto número não superior a três, isto é, ao lado dos genitores biológicos a presença de um pai/mãe socioafetivo.
Quanto à possibilidade de mais de três ascendentes diretos na mesma certidão, merece estudo mais acurado pelos operadores do direito em conjunto outras áreas do conhecimento, como a psicologia, para se verificar se o indivíduo admite a representação subjetiva dessas figuras. O operador do direito, em especial os juízes, devem se instrumentalizar o suficiente para enfrentar os casos concretos, evitando, com isso, que pedidos com interesses meramente patrimoniais cheguem a ser chancelados, descaracterizando o instituto.
Necessário se faz, também, esclarecer que a presente tese de reconhecimento de multiparentalidade em nada abona a quebra do princípio monogâmico[25], pelo contrário, reforça-se a unidade familiar, centrada no casal, mas não impede que, em havendo a ausência de uma das figuras ou mesmo na consolidação de um (novo) vínculo filial por uma nova união de um dos genitores, exclua-se o vínculo já consolidado. Exemplifica-se com os casos de famílias recompostas.

3.1    OS EFEITOS DO RECONHECIMENTO DE MULTIPLOS PAIS E MÃES
Desfrutando-se hoje da previsão legal (Constitucional e infraconstitucional) da igualdade entre os filhos, reconhecida a multiparentalidade registral, todos os efeitos jurídicos daí decorrem: direito a alimentos, guarda, direitos sucessórios, etc. Estende-se a todos os pais que constarem no registro da criança o poder familiar.
Situações curiosas podem ocorrer. Estando os três pais vivos, isto é, reconhecida a multiparentalidade registral em vida, a criança poderá desfrutar da guarda compartilhada dos três pais, por exemplo. Havendo conflito quanto a esta, deve o Poder Judiciário preservar o melhor interesse da criança, bem como garantir aos pais o direito a visitação, de forma que seja possível o equilíbrio entre os três.
Inegável, também, são os efeitos sucessórios decorrentes do reconhecimento, tendo o filho direito a herança de todos os pais registrais. Importante aqui é considerar o avanço decorrente da multiparentalidade registral, uma vez que um filho socioafetivo não reconhecido, em regra, não tem direitos sucessórios, somente o filho registral.
O nome, direito personalíssimo subjetivo, acompanha o registro. Quando do reconhecimento jurídico do vínculo multiparental, a criança herda a ascendência dos pais materializada no nome civil.

3.2    O RECONHECIMENTO E REGISTRO DE MULTIPARENTALIDADE
O reconhecimento dos filhos é ato (voluntário ou forçado) por meio do qual se estabelece a relação de parentesco em primeiro grau na linha reta[26].
Quando há a necessidade de reconhecimento forçado da filiação, deve-se instaurar processo judicial de investigação de paternidade junto à Vara de Família. Nos casos de multiparentalidade até então reconhecidos pelo Judiciário, a maioria deu-se em processo nas Varas de Família, onde se investigou o vínculo (biológico ou socioafetivo) deveria se sobrepor ao já existente no registro de nascimento. Os casos em que o Poder Judiciário cumula os vínculos biológicos e socioafetivo é consectário lógico da dignidade humana e da proteção integral à família.
No tocante ao reconhecimento voluntário (após o nascimento), disciplina o art. 1.607[27], do Código Civil, que o reconhecimento pode se dar por ato dos pais (conjunta ou separadamente), ou ainda, nas hipóteses do art. 1.609[28], do mesmo Diploma. Em sendo voluntário, instaurar-se-á procedimento de jurisdição voluntária, junto à Vara de Registros Públicos[29], uma vez que todos os interessados estão de acordo, isto é, não há litígio. Note-se que não há discussão quanto ao vínculo (biológico ou afetivo), busca-se, tão somente, o registro da condição de pai/mãe no registro de nascimento.
Tal procedimento amolda-se perfeitamente aos casos de multiparentalidade em que seja voluntário o reconhecimento. Deve-se, portanto, ajuizar a respectiva demanda na Vara de Registros Públicos.
Em decisão inédita[30]-[31], a Vara de Registros Públicos da Comarca de Santa Maria/RS, que funciona junto à Direção do Foro, reconheceu o primeiro registro de nascimento de multimaternidade, em conjunto com a paternidade biológica.
Trata-se de um caso em que um casal homoafetivo formado por duas mulheres, sendo que uma delas voluntariamente engravidou, pleiteava o reconhecimento da dupla maternidade, em conjunto com a paternidade biológica. Em sensibilíssima decisão, o MM. Juiz Rafael P. Cunha reconheceu a procedência do pedido.
O ineditismo da decisão refere-se que a criança, desde o primeiro registro já possui duas mães[32]. A tese trabalhada na inicial foi que, em a “mãe socioafetiva”, desde o início da gestação, possui uma “posse de estado de mãe” em relação à criança. Quanto a esta, desde cedo crescerá com “posse de estado de filho” em relação à mãe socioafetiva. No tocante à posição do genitor, indiscutível seu direito de constar no registro de nascimento da criança. Logo, a criança terá duas mães, um pai e seis avós.
Tal decisão não só reforça a tese de multiparentalidade, como também o múltiplo reconhecimento por casais homoafetivos, representando, portanto, significativo avanço para o Direito das Famílias[33].
Desta forma, a multiparentalidade registral vem a efetivar os princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade, uma vez que reconhece o fenômeno social da filiação já existente – embasada no amor, no afeto, na atenção – como fenômeno normativo.
Importante considerar que há distinção entre a adoção unilateral, uma vez que não há a substituição dos pais biológicos, apenas o acréscimo no registro de nascimento do pai ou mãe socioafetivo, garantindo-se a este(a), por conseguinte, todos os efeitos decorrentes da paternidade/maternidade.
Logo, conclui-se que a multiparentalidade como fenômeno recente no Direito de Família, vem a possibilitar que determinada pessoa cumule em seu registro de nascimento mais de dois vínculos paternos. As decisões, apesar de escassas, representam significativo avanço, pois vem a efetivar os direitos dos sujeitos envolvidos. Em um país com milhares de crianças e jovens na fila de adoção, aquele que pode ter mais de dois pais é realmente um sortudo.




[1] Professora Titular do Centro Universitário Franciscano. Advogada especializada em Direito de Família e Sucessões. Mestre em Direito Público pela UNISC. .
[2] Advogada. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Franciscano. Pós-graduanda pela Faculdade Damásio em Direito de Família e Sucessões. .
[3] Advogado. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Franciscano. .
[4] Segundo Carlos Alberto Dabus Maluf, diversas são as formas de família existentes na sociedade atual, os arranjos familiares obedecem a uma enorme diversificação, quais sejam: família matrimonial, família formada na união estável, monoparental, unilinear, homoafetiva, famílias recompostas, mosaico, pluriparental, anaparental, eudemonista, paralela. Todas elas primando pela proteção do ser humano, tendo em vista o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo calcadas principalmente na afetividade (MALUF; Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus; MALUF, Carlos Alberto Dabus. Curso de direito de família. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 38).
[5] Rolf Madaleno, citando o magistério de Sérgio de Barros Resende, afirma que “O afeto é o que conjuga. Apesar da ideologia da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai e mãe. Há famílias só de homens e só de mulheres, como também sem pai ou mãe. Ideologicamente, a atual Constituição brasileira, mesmo superando o patriarcalismo, ainda exige o parentalismo: o biparentalismo ou o monoparentalismo. Porém, no mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal- tão forte e estreito, tão nítido e persistente- que hoje independe do sexo e até das relações sexuais, ainda que na origem histórica não tenha sido assim. Ao mundo atual, tão absurdo é negar que, mortos os pais, continua existindo entre os irmãos o afeto que define a família, quão absurdo seria exigir a prática de relações sexuais como condição sine qua non para existir a família. Portanto, é preciso corrigir ou, dizendo com eufemismo, atualizar o texto da Constituição brasileira vigente, começando por excluir do conceito de entidade familiar o parentalismo: a exigência de existir um dos pais” (MADALENO, Rolf. Curso de direito de famílias. Rio de Janeiro: Forense, 2011, pag. 6).
[6] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pag. 65.
[7] Idem. p. 65.
[8] Maria Berenice Dias assevera que “hoje, temos por bem, dar valor ao sentimento, a afeição, ao amor da verdadeira paternidade, não sobrepujar a origem biológica do filho e desmistificar a supremacia da consanguinidade, visto que a família afetiva foi constitucionalmente reconhecida e não há motivos para os 23 operários do direito que se rotulam como biologistas e se oporem resistência à filiação sociológica. Essa é a realidade” (DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pag. 31).
[9] Nessa perspectiva histórica, importante é a colaboração de Jorge Shiguemitsu Fujita que refere que em Roma, até o século III d.C. ao paterfamilias era conferido o direito de vida e morte sobre os filhos. Já no período da Idade Média os filhos eram incentivados à obtenção de um ofício, nas classes mais baixas; e, nas mais elevadas, ao aprendizado de idiomas, bons modos e dos esportes ligados à cavalaria. A idade moderna é caracterizada pela escolarização, fundada em especialização mais especializada e teórica, antes designada apenas aos religiosos. O autor conclui o capítulo asseverando que a pós-modernidade traz a marca da maior sensibilidade e afetividade na relação paterno-materno-filial (FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. São Paulo: Atlas, 2009. p. 11-16).
[10] Preferiu-se a expressão “direito brasileiro” haja vista que adotar o critério puramente legislativo seria desconsiderar a imensa contribuição doutrinária e jurisprudencial para a consolidação do referido conceito.
[11] DAYRELL, Carlos. Da filiação ilegítima no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 9.
[12] Para Washington de Barros Monteiro, “o vocábulo filiação exprime a relação existente entre os filhos e as pessoas que o geraram” (MONTEIRO, Washigton de Barros. Curso de Direito Civil: Direito de Família. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 237).
[13] Silvio Rodrigues conceitua filiação como “a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa aqueles que o geraram” (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito de Família. 10. ed. rev. e atual. v. 6. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 287).
[14] No ano de 1983, em monografia dedica ao tema, o professor catedrático da Universidade Federal de Goiás, Carlos Dayrell., afirmava, com certo espanto, a conquista da fecundação in vitro. Cita o autor o primeiro “bebê de proveta”, nascido em Oldham, Inglaterra, em 25 de julho de 1983, sendo seguido por um segundo nascimento em Calcutá, Índia, em 3 de outubro de 1978 e um terceiro nascimento em 15 de janeiro de 1979, em Glasgow, Escócia (DAYRELL, Carlos. Ob. Cit. p. 3-5).
[15] “A possibilidade de fecundação por meio de inseminação artificial (...) não muda o aspecto da questão inicialmente focalizada, pois haverá sempre um vínculo a unir intimamente o ser humano àqueles que o geraram, pouco importando – repete-se – que sua concepção tenha sido conseguida normalmente ou por processo desnatural, através de inseminação artificial, ou mesmo fora do ventre materno (Idem. p. 6)”. Reitera-se no trecho em destaque a preocupação exclusivamente genética.
[16] À luz do Código Civil de 1916, presume-se filho aquele nascido até 300 (trezentos) dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, assim como os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, após o estabelecimento da sociedade conjugal.
[17] DAYRELL, Carlos. Ob. Cit. p. 17.
[18] Em 2002, o atual Código Civil, em seu artigo 1.596, repetiu integralmente o parágrafo 6º, do art. 227, da Constituição Federal de 1988, suplantando qualquer resquício de discriminação na seara privada.
[19] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: Famílias. 4. ed. rev., ampl., e atual. v. 6. Salvador: JusPODIVM, 2012. p. 614.
[20] Idem. p. 670.
[21] MADALENO, Rolf. Ob. Cit. p. 488.
[22] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: Uma abordagem psicanalítica. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 116-127.
[23] Para mais, importante a leitura da obra Direito de Família: Uma abordagem psicanalítica, do Magistério de Rodrigo da Cunha Pereira, Capítulo 6: “A parte da mulher e a mãe” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: Uma abordagem psicanalítica. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 99-112).
[24] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 00642-26.201.8.26.0286.  1ª Câmara de Direito Privado. Vivian Medina Guardia; Augusto Bazanelli, Juízo da Comarca de Itú. Relator Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior. São Paulo. 14 ago. 2012. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2014.
[25] Para Rodrigo da Cunha Pereira, “o princípio da monogamia, embora funcione também como um ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da família e do mundo ocidental. Se fosse mera regra moral teríamos que admitir a imoralidade dos ordenamentos jurídicos do Oriente Médio, onde vários Estados não adotam a monogamia” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 127).
[26] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: Famílias. 4. ed. rev., ampl., e atual. v. 6. Salvador: JusPODIVM, 2012. p. 679.
[27] “Art. 1.607. O filho havido fora do casamento pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente”.
[28] “Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I - no registro do nascimento; II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes”.
[29] Esse também é o magistério de Belmiro Pedro Welter, que leciona no sentido de que “quando se tratar de ação judicial de investigação de paternidade, na qual são requeridas a citação do suposto pai e a produção de todas as provas admitidas em Direito, ocorrendo o reconhecimento forçado da filiação, a competência para o julgamento da ação é da Vara de Família. Agora, na primeira fase, conhecida como procedimento administrativo da averiguação oficiosa da paternidade, não há processo contenciosos, mas simples tentativa de reconhecimento voluntário da paternidade. O suposto pai não sofrerá nenhum prejuízo caso se negue a reconhecer a paternidade ou mesmo quando não comparecer a audiência, isso porque tudo é feito na esfera administrativa. É por isso que a competência da averiguação da paternidade não é da Vara de Família, e sim da Vara de Direção do Foro ou da Vara de Registros Públicos, onde houver, pois não se estará promovendo a audiência de tentativa de conciliação na pendência da ação de investigação de paternidade, e sim audiência em procedimento em que não há lide” (WELTER. Belmiro Pedro. Igualdade entre as Filiações Biológica e Socioafetiva. São Paulo: RT, 2003. p. 71).
[30] Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Processo nº 027/1.14.0013023-9.
[31] Os Autores do presente artigo atuaram no processo supracitado, advogando à tese de multiparentalidade registral.
[32] Todas as decisões pretéritas trabalham com o registro posterior, isto é, após o nascimento, onde se investiga a existência de filiação socioafetiva.
[33] Paulo Lôbo, citando o pensamento de Maria Berenice Dias, leciona que: “A impossibilidade de filiação por casais homossexuais não retira o status quo de família, uma vez que a família sem filhos é família tutelada constitucionalmente e a procriação não é sua finalidade. Ademais, não há impedimentos constitucionais para que duas pessoas do mesmo sexo venham a adotar uma criança. A adoção é permitida a qualquer pessoa, independentemente do estado civil (art. 42 do ECA e 1.618 do Código Civil) não impede que a criança se integre à família, ainda que o parentesco civil seja apenas com um dos parceiros” (LÔBO, Paulo Luiz Neto. Direito civil: Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 91).