autora:
Maria Aglaé Tedesco Vilardo
Fonte:http://bioeticaebiodireito.blogspot.com.br/2012/10/etica-juridica-e-decisao-judicial.html
O problema ético na aplicação do
Direito possui um horizonte prático relevante. A identificação deste horizonte
deve ser feita em contraste com o horizonte teórico.
A filosofia busca constituir
situação que permita contemplar a verdade na sua dimensão prática tendo em vista
que o ser humano é um ser movido pelo desejo e tem por objetivo a felicidade.
Aristóteles,
pai da ética, afirma que “o homem é naturalmente um animal político, destinado a
viver em sociedade” e que a moderação das paixões é o caminho da
felicidade. Para o filósofo, a Lei deve
ser capaz de compreender as limitações do ser humano, suas paixões e instintos,
e produzir instituições que promovam o bem e reprimam o mal. A lei não deve
moldar o real, mas o contrário, a realidade deve moldar a lei, assim, ela será
passível de cumprimento.
A
essência da virtude se encontra na moderação entre os extremos de cada paixão, o
caminho do meio. Para ele o conhecimento é dividido entre o conhecimento prático
e teórico, o primeiro sendo o conhecimento de como agir corretamente e o segundo
o conhecimento do que é bom por si mesmo.
Estabelece
como fonte da ética a noção de que a Felicidade (eudaimonia) é recompensa dos
virtuosos. Aristóteles propõe uma sociedade na qual as instituições tentam
harmonizar estes sentimentos básicos dos seres humanos de forma a produzir o
melhor resultado possível para que o bem individual e o bem coletivo sejam
harmônicos. Busca uma Ética do Possível, que não desrespeite a paixões humanas,
mas antes as oriente pelo caminho da ponderação até a maturidade racional do
equilíbrio.
Com
base na teoria ética de Aristóteles destacamos o caso que segue para breve
exame.
PARECER
Nº 82/2010_E_ PROCESSO Nº 2009/104323- Procedimento Administrativo –
Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São
Paulo
REGISTRO
CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS _ Assento de nascimento _ Filha gerada mediante
fertilização in vitro e posterior inseminação artificial, com implantação do
embrião em mulher distinta daquela que forneceu o material genético _ Pretensão
de reconhecimento da paternidade pelos fornecedores dos materiais genéticos
(óvulo e espermatozóide) _ Cedente do óvulo impossibilitada de gestar, em razão
de alterações anatômicas _ “Cedente do útero”, por sua vez, que o fez com a
exclusiva finalidade de permitir o desenvolvimento do embrião e o posterior
nascimento da criança, sem intenção de assumir a maternidade _ Confirmação, pelo
médico responsável, da origem dos materiais genéticos e, portanto, da
paternidade biológica em favor dos recorridos _ Indicação da presença dos
requisitos previstos na Resolução nº1.358/1992 do Conselho Federal de Medicina,
em razão das declarações apresentadas pelos interessados antes da fertilização e
inseminação artificiais _ Assento de nascimento já lavrado, por determinação do
MM. Juiz Corregedor Permanente, com consignação da paternidade reconhecida em
favor dos genitores biológicos _ Recurso não
provido.
O
Ministério Público do Estado de São Paulo interpôs recurso contra a decisão do
Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e
Tabelião de Notas do Distrito de Barão Geraldo, da Comarca de Campinas, que
afastou a recusa de lavratura de assento de nascimento de criança com imputação
da paternidade aos fornecedores de materiais genéticos utilizados para
fertilização in vitro e inseminação
artificial em mulher que, sem ser a produtora do óvulo, autorizou a prática do
ato com a exclusiva finalidade de permitir o desenvolvimento do embrião e o seu
futuro nascimento.
A alegação fundamentou-se no fato de que a maternidade é presumida pela
gestação e que o contrato entre as partes não supera este princípio e que devem
prevalecer os interesses da criança, o que ocorrerá com a lavratura de assento
de nascimento que retrate a estrita veracidade quanto à paternidade e
maternidade, de forma a assegurar a preservação da dignidade humana.
O
Ministério Público considera que a lavratura do assento de nascimento na forma
pretendida não possibilitará o futuro conhecimento, pela criança, de sua real
origem, porque ocultará a verdadeira maternidade. Além disso, não existe
regulamentação legal para a prática pretendida pelos recorridos, o que impõe
maiores cautelas e impede, por sua vez, a presunção de paternidade e maternidade
tão só pelas declarações apresentadas pelos interessados, nas quais se inclui a
do médico responsável pela fertilização e pela inseminação. Tece comentários
sobre a possibilidade de manipulação genética vedada ou ilegal. Afirma, por fim,
que a genitora que deu à luz não tem parentesco com os supostos pais biológicos,
o que contraria resolução do Conselho Federal de Medicina destinada a impedir a
comercialização do útero. Requer o provimento do recurso para que seja
determinada a lavratura do assento de nascimento em nome da mulher indicada como
genitora na Declaração de Nascido Vivo, com remessa dos interessados às vias
ordinárias para a solução de eventual litígio relativo à paternidade e
maternidade.
O
Juiz Auxiliar da Corregedoria da Comarca da Capital de São Paulo, Dr. José
Marcelo Tossi Silva, em 19/3/2010 emitiu parecer no sentido de se manter o
registro em nome dos pais doadores dos gametas. Fundamentou seu parecer
afirmando que diante da inexistência de legislação específica deveria ser
observado que o Conselho Federal de Medicina, no campo da ética, regulamentou a
conduta de seus membros, na denominada “gestação de substituição”, por meio da
Resolução nº 1.358/92.
Acrescentou
que a solicitação de registro foi instruída com “Declaração de Nascido Vivo” do
hospital onde a criança nasceu, além dos documentos: “Termo de Consentimento
para Substituição Temporária de Útero” constando os “Pais Genéticos”, ou seja,
fornecedores do óvulo e do espermatozóide, e
“Doadores do Útero” ; “Termo de Consentimento Pós Informado para
FIV/ICSI”; “Termo de Consentimento Pós-Informado para Criopreservação de
Pré-Embriões/Embriões após Fertilização In Vitro”; declaração prestada pelo
médico confirmando a origem dos materiais genéticos que resultaram na
fertilização e inseminação artificiais; declaração da gestante no sentido de que
foi submetida a inseminação artificial de embrião fertilizado com uso de
materiais genéticos alheios e de que não tem pretensão de assumir a maternidade
da criança assim gerada.
Diante
da ausência de regulamentação legislativa, a solução para as situações
concretas, ocorridas a fertilização in
vitro e a posterior inseminação artificial em “cedente de útero”, ou
“mãe-de-substituição”, deve prevalecer o melhor interesse da criança desse modo
concebida e nascida, o que, neste caso concreto, corresponde à lavratura do
assento de nascimento com base na verdade biológica da filiação.
Os
documentos são concludentes no sentido de que a concepção e paternidade sempre
foi desejada pelos pais biológicos, doadores dos materiais genéticos utilizados
na fertilização in vitro,
prestando-se a cedente do útero a servir para a gestação e parto, sem qualquer
intenção de assumir a maternidade da criança. Assim, declarou por
escrito.
Evidente
que a lavratura do registro em desconformidade com a verdade biológica será
prejudicial à criança que nenhum sustento e educação receberia da gestante.
O
parecer foi aprovado pelo Corregedor Geral da Justiça, Des. Antonio Carlos
Munhoz Soares, em 26/3/2010.
Ao analisarmos o caso sob o enfoque da ética de Aristóteles destacamos
que os doadores dos gametas, movidos pelo desejo da paternidade/maternidade (“o
ser humano é um ser movido pelo desejo”) e impossibilitados de realizá-lo
naturalmente, tiveram que realizar a fertilização em vitro com a ajuda de outra
mulher que pudesse gestar em seu útero um embrião oriundo do óvulo e
espermatozóide do casal.
O objetivo do casal era a felicidade em serem pais e os avanços
biotecnológicos permitiam alcançar tal felicidade. Como Aristóteles preconizou “
A lei não deve moldar o real, mas o contrário, a realidade deve moldar a lei,
assim, ela será passível de cumprimento”. Assim, o casal, diante da real
possibilidade da gestação de substituição, criou situação não prevista
especificamente em lei. Todavia, houve a preocupação dos médicos em regulamentar
eticamente a gestação de substituição através da resolução mencionada que criou
alguns parâmetros básicos para que ocorresse. Claro que são caminhos a seguir,
porém não há determinação de que não possam ser relativizados como foi no caso
mencionado, ante a ausência de parentesco da gestante com os doadores ( “A
essência da virtude se encontra na moderação entre os extremos de cada paixão, o
caminho do meio”).
Os avanços biotecnológicos permitem
a realização deste desejo, a felicidade pode ser alcançada através da ciência. O
registro civil em nome dos pais doadores pode ser realizado sem exame de DNA ou
processo de investigação de paternidade, pois “propõe uma sociedade na qual as
instituições tentam harmonizar estes sentimentos básicos dos seres humanos de
forma a produzir o melhor resultado possível para que o bem individual e o bem
coletivo sejam harmônicos”. Não se verifica a geração de instabilidade na
sociedade ao se autorizar que os doadores, munidos de atestados e declarações da
veracidade dos fatos, registrem diretamente seu filho, pois além do próprio bebê
ter o direito ao seu registro civil em nome dos pais doadores, em razão do seu
melhor interesse (ser criado por aqueles que lhe desejavam intensamente), há
permissão social para tal concepção, inclusive regulamentada por resolução
médica.
O
direito ao registro é consectário lógico da cidadania. Exigir-se processo
judicial e exame de DNA e vedando-se o imediato registro, coloca-se em questão a
realização de atividade médica de fertilização trazendo constrangimento aos
contratantes – tanto à gestante, quanto aos doadores (“as paixões humanas devem
ser orientadas pelo caminho da ponderação até a maturidade racional do
equilíbrio”).
Desta
forma, conclui-se que ao indicar o caminho do meio encontrou-se a maturidade
racional do equilíbrio. A possibilidade científica que permite às pessoas terem
acesso a conquistas ainda não regulamentadas por lei deve ser amparada em
sentido amplo com a concessão de todos os direitos civis decorrentes daquele
ato. O planejamento familiar é fundado
nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável,
conforme art. 226, § 7º da Constituição Federal, cabendo ao Estado propiciar os
recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito. Complementar
a essa obrigação do Estado, encontra-se o direito a tornar público, através do
registro imediato, o nascimento da criança ocorrido em razão de progresso
científico.
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