Li,
no blog de um psicanalista, que as manifestações de dor nas redes sociais, em
virtude do incêndio na boate Kiss, eram uma hipocrisia, pois “precisamos fingir
que nos importamos”. A mim, parece que este psicanalista entende pouco de seres
humanos, pouquíssimo de redes sociais e quase nada de Santa
Maria.
Não
perdi ninguém próximo e mesmo assim fui atirada em uma tristeza concreta, que
durou dias. Uma amiga descreveu o que sentia como “um cansaço crônico”. Com voz
baixa, doída, meu pai se disse “devastado”. Longe ou perto, vivemos dias de
insônia e de lágrimas. Dias de impotência, fragilidade, incredulidade, silêncio.
Dias de chorar pela dor do outro, imaginando-se no lugar do outro, sentindo pelo
outro, sentindo com o outro. Com os pais, os irmãos, os amigos, os professores.
Uma tristeza funda, que nada tinha de artificial. Aquela tristeza que mostra,
cruamente, a desimportância de todas as coisas. Por que, afinal, doeu
verdadeiramente em tantas pessoas?
É
porque ali, talvez alguns se lembrem, ali não era uma boate. Ali era a
distribuidora da Brahma. A distribuidora do Ives Roth, que para mim era “o pai
do Cabeto”. Na frente dali, não era o Carrefour. Era o colégio Hugo Taylor, a
antiga Escola de Artes e Ofícios, de propriedade da cooperativa dos
ferroviários.
Na
esquina da Niederauer com a Floriano não havia uma agência bancária. Era a
entrada do colégio Santa Maria. E na esquina da Floriano com a Presidente Vargas
não havia uma farmácia. Era o bar Em Cena. A cidade vai mudando por fora, mas,
de um jeito estranho e emaranhado, fica sempre a mesma dentro da
gente.
A
Santa Maria da Boca do Monte que eu guardo tem o cheiro do pão quentinho da
padaria Holterman. Tem a marcação do sino do colégio Centenário. Tem as cores do
sorvete do seu João e a textura da massa folhada da Copacabana. Esta Santa Maria
se fez nas casas compridas da Vila Belga. Se fez no cine Independência, no
Glória e no Glorinha. Nos bailes de carnaval do Caixeiral e do Tênis. Nas
tertúlias, nas festas no Comercial e no Minuano, no Socepe e no Pinhal.
Na
minha memória vivem a galeria do Comércio, a ponte do Itararé, o prêmio Felipe
de Oliveira, a procissão da Medianeira. Vivem os trens no final da Rio Branco e
a aventura de atravessar os trilhos na Sete de Setembro. Vivem a Feira do Livro,
as tartarugas da Saldanha Marinho, as histórias da Garganta do Diabo.
Santa
Maria, a cidade de mil conexões. Cresce, muda e de algum modo permanece igual. A
cidade por onde passam militares de todos os cantos e estudantes de lugares
impensáveis. A cidade que acolhe quem busca ser mais. Pessoas que chegam e
partem, levando a lembrança do vento norte e da beleza impressionante das
montanhas.
Mas
a melhor memória não é que retém nomes e espaços. A memória que aciona a empatia
é aquela que reteve emoções fundas. Primeiro os colégios e os colegas. Depois a
universidade e um mundo de ações coletivas que se desenham a partir da cidade. A
Santa Maria que eu guardo na memória é a do movimento estudantil, dos
secundaristas e depois do DCE. A cidade dos longos debates, das noites pichando
poemas que desafiavam a brutalidade. Das festas, das idéias, das ruas cruzadas
em bando nas madrugadas frias. Nosso caráter era moldado no
coletivo.
Tudo
isso muda, geração após geração. Alteram-se os espaços, as causas, os endereços.
Os lugares se empilham na nossa memória, uns sobre os outros, sendo uma coisa,
depois outra, e outra, e assim se fazem as histórias das cidades. Mas meio que
muda sem mudar. A conexão afetiva está lá, e é ela que nos faz olhar para esta
tragédia de um jeito enredado. Alguém disse, no Facebook, que a dor acontecia
“na casa de cada um de nós”. É evidente que existem gradações, diferenças,
distinções segundo a proximidade de cada um. Mas sim, é exatamente isso,
acontece verdadeiramente dentro de cada um de nós. Expressar este sentimento nas
redes sociais é o movimento óbvio, humano, de
compartilhar.
Não
temos a morte na agenda. Ela quase sempre nos pega de surpresa. Ela arrebenta,
destroça, devasta. Especialmente quando é prematura e quando é desmedida. Mas
também quando a nossa memória diz que ali não era apenas uma boate. E que na
frente dali não era apenas um supermercado.
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