Anotações sobre a Lei nº 11.977/2009
(13.04.12)
Por Gabriel Schievano Finotti,advogado (OAB/SP nº 221.6330)
fonte- espaçovital.com.br
Nas últimas décadas, presenciamos
no Brasil um crescimento populacional e urbano desproporcional ao número de
moradias construídas.
A falta de
um programa voltado à construção de moradias para a classe populacional menos
favorecida, adicionado às dificuldades para obtenção de crédito junto às
instituições financeiras e elevados preços das locações que consumiam grande
parte dos salários, levaram os trabalhadores e famílias com baixa renda a
efetivarem ocupação em imóveis particulares urbanos abandonados, em construção,
ou mesmo iniciarem construções irregulares, contribuindo inclusive para um
processo de favelização nas cidades.
Em verdade, havia muita dificuldade para se
desenvolver produtos imobiliários que satisfizessem a capacidade de
financiamento dos cidadãos e das famílias de baixa renda.
Diante deste desafio de estruturação de
políticas habitacionais, o Governo Federal lançou o Programa Minha Casa, Minha
Vida, instituído pela Lei Nº 11.977/2009, criado para requalificar imóveis
urbanos, construir unidades habitacionais e produzir ou reformar imóveis
rurais.
Se, por um lado, é correto
afirmar que a implantação do programa objetivou combater efeitos do
desaquecimento da economia brasileira, produzidos pela crise internacional,
criando-se empregos com o investimento na indústria da construção civil, por
outro, serviu como importante mecanismo de fixação de novas moradias às famílias
de baixa renda, cumprindo o Estado seu papel intervencionista no propósito de
garantir e proteger o bem-estar social do grupo familiar.
Em linhas gerais, a Lei Nº 11.977/2009
representa a implementação de políticas habitacionais (art. 23, IX, da
Constituição Federal), oportunizando a aquisição de imóvel residencial à
população de baixa renda, denotando a vontade política do Estado em bem atender
as suas funções institucionais.
O
beneficiário do Programa Minha Casa Minha Vida é o grupo familiar, definido como
unidade nuclear composto por um ou mais indivíduos que contribuem para o seu
rendimento.
Poderiam ser
beneficiados pelo aludido programa, a título de exemplo, uma Família Unipessoal
(como pessoas solteiras ou viúvas), uma Família Matrimonial (Casamento) ou uma
União Estável, todos com ou sem filhos.
Ocorre que, no último dia 08 de março de 2012,
verificamos que a Presidenta Dilma Rousseff adotou a Medida Provisória 561,
decisão publicada no Diário Oficial da União, que, entre outras disposições,
acrescenta o artigo 35-A à Lei Nº 11.977/2009 (PMCMV).
Referido artigo dispõe que a propriedade de
imóvel adquirido na constância de casamento ou união estável, no âmbito do
Programa Minha Casa, Minha Vida, será registrado em nome da mulher ou a ela
transferido em caso de dissolução da união estável, separação ou divórcio,
excluindo-se os casos que envolvessem recursos do FGTS.
Já o parágrafo único dispõe que referido imóvel
será transferido ao marido ou companheiro, ou registrado em seu nome, quando a
guarda do(s) filho(s) do casal for atribuída exclusivamente a ele.
Em resumo, pelo dispositivo
legal, permite-se o entendimento de que a mulher tem direito sobre o imóvel
objeto do financiamento em caso de separação, divorcio ou fim de união estável.
Com o final do relacionamento, o homem fica com o imóvel apenas quando obtiver a
guarda exclusiva dos filhos do casal. E pasmem! O imóvel ficará com a mulher em
caso de guarda compartilhada, ou mesmo quando não tenham filhos!
Pois bem, passemos à questão em debate, a
inconstitucionalidade do artigo 35-A, da Lei Nº 11.977/09, instituído pela
Medida Provisória 561/2012.
Veja-se que a adoção da Medida Provisória foi
pronunciada pela Presidenta em rede nacional de rádio e televisão, por ocasião
do Dia Internacional da Mulher, também celebrado no último dia 8 de
março.
Primeiro cumpre destacar a
importância das vitórias conquistadas pela mulher ao longo do século passado,
até o início deste, por meio das modificações ocorridas nos diplomas legais.
Historicamente, no caso da
família, o modelo foi predominantemente patriarcal, onde mulher e filhos sempre
estiveram submissos ao homem.
Posteriormente, houve uma constante evolução da
condição jurídica da mulher, culminando, no Brasil, com o reconhecimento da
igualdade constante na Constituição Federal de 1988, e na ratificação dos
direitos conquistados no Código Civil de 2002.
A mulher conseguiu seu espaço na sociedade como
cidadã, conquistando a formalização da igualdade de condições com o homem, após
justa luta em busca de sua emancipação.
Mas ao incluir o artigo 35-A na Lei 11.977/09,
um ponto importante não pode passar em branco: houve violação de princípios
consagrados na Constituição Federal de 1988.
A Carta de 1988, no artigo 5º, caput, destaca
que “todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza”. E o inciso I dispõe que “homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações, nos termos desta Constituição”.
Pelo Princípio da Igualdade, reconhece-se a
dignidade do homem e da mulher, a posição de paridade quanto aos direitos e
deveres da sociedade conjugal.
A
Constituição Federal, em seu artigo 226, § 5º, também reforçou a igualdade no
lar conjugal: “os direitos e deveres referentes
à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
Os cônjuges devem ter um tratamento simétrico.
Pondere-se que nenhuma norma
infraconstitucional ou medida provisória está autorizada a criar tratamentos
abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas.
Há um paradoxo insuperável em
atribuir, obrigatoriamente, o imóvel objeto de financiamento somente à esposa ou
companheira, após a dissolução da união estável, separação ou divórcio.
Reconhecida a posição de paridade entre homem e mulher, quanto aos direitos e
deveres da sociedade conjugal, resta evidente a inconstitucionalidade do artigo
35-A.
Verifica-se, ainda, afronta
ao Princípio da Livre Disposição de Bens, que também deve ser
respeitado.
Sob a égide desse
princípio, homem e mulher podem estipular o regime de bens que imperará no
matrimônio. É o encontro da vontade dos cônjuges livres e iguais, porém com
certos limites, que a lei impõe.
Assim, os cônjuges possuem liberdade na escolha
do regime de bens, podendo acolher um regime legal existente. A interpretação é
que o art. 35-A pode modificar o acordo pactuado e favorecer a mulher,
infringindo as normas relativas aos fins do casamento e à estrutura da
família.
Imagine-se, por exemplo,
o caso em que os cônjuges optem pelo regime da comunhão universal, firmado por
pacto antenupcial: haverá apenas um patrimônio comum, com comunicabilidade dos
bens adquiridos antes ou durante a constância do casamento. Em caso de
separação, e aplicando-se o artigo 35-A, se o casal não possuir filhos, ou a mãe
obtiver a guarda de filhos existentes, a mulher terá direito sobre o bem imóvel,
ainda que adquirido com esforço comum, ou mesmo com contribuição material
exclusiva do homem.
E uma última
observação é necessária.
A criação
do artigo 35-A inequivocamente concretiza afronta ao Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana (art. 1, III, da Constituição Federal).
A dignidade da pessoa humana é atributo que
todo ser humano possui, independe de sexo, seja homem ou mulher, está
relacionada com os valores do espírito, bem como às condições materiais de
subsistência. Trata-se, pois, do próprio direito de sobrevivência do homem e da
mulher.
O imóvel adquirido
durante o relacionamento conjugal, inclusive pelo Programa Minha Casa, Minha
Vida, é bem indispensável a uma vida humana digna.
Por todo o exposto, reputa-se inconstitucional
o artigo 35-A da Lei 11.977/09 (incluído pela Medida Provisória nº 561, de
2012), dado o desrespeito aos princípios assegurados pela Lei
Maior.
Como já observado, é com
orgulho que assistimos a mulher ocupando cada vez mais espaço e obtendo
condições de igualdade com o homem. São conquistas que devem ser festejadas como
evolução da sociedade.
Entretanto, este extraordinário avanço,
construído inclusive por ações afirmativas, não pode permitir discriminação
injustificada, até porque o texto do aludido artigo certamente não foi
confeccionado em contemplação às condições pessoais da mulher.
A Constituição Federal veda qualquer tipo de
discriminação em função do sexo. Permitir que o ex-marido ou ex-companheiro
mantenha o título da propriedade do imóvel apenas quando a guarda de filho(s)
seja atribuída exclusivamente a ele não é apenas cercear direitos
constitucionalmente garantidos, mas instrumentalizar um retrocesso na luta em
defesa da igualdade que a humanidade sempre buscou.
gabrielfinotti@hotmail.com
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