A
última aula
Já
estava nos momentos finais da aula: a última antes da minha aposentadoria. Com
uma tristeza mal disfarçada percebi que aquela sala era a mesma onde havia
começado minha vida acadêmica. Pura coincidência: minha última atividade como
docente no Curso de Direito da UFSM, acontecia no mesmo local onde tive minha
primeira atividade como jovem e orgulhosa acadêmica de Direito.
Mais
uma coincidência: naquele momento ouvi batidas na porta, pedi licença aos
alunos e, para minha surpresa, deparei-me com a velha senhora. Tratava-se de uma
cliente a quem tinha atendido muitos anos antes, quando atuava como orientadora
no Estágio Supervisionado. Ela disse que estava a minha procura para ter
informações sobre um valor que lhe era devido pelo Estado desde 1994. Lembrei
que foi um dos primeiros processos em que atuei com os alunos, onde ela teve
reconhecida judicialmente sua condição de pensionista, como companheira do
segurado do IPE, e até aquele momento não havia conseguido receber seus
atrasados.
Aquela
inesperada interrupção despertou lembranças escondidas que se revelaram com uma
clareza inesperada. Dei-me conta de que, na função de orientadora do Estágio
Supervisionado, vivenciei meus melhores tempos de professora universitária. Como
estagiária, no mesmo local, também tive grandes alegrias, como no êxito obtido
no pedido de relaxamento de uma prisão, que possibilitou a um presidiário
assumir um cargo no concurso público em que havia sido nomeado. Momento mágico:
uma jovem estudante de Direito entregando um alvará de soltura para o diretor
do Presídio Regional de Santa Maria.
No ano de 1979 fui apresentada ao mundo do
Direito na UFSM. Passei cinco anos na chamada “Antiga Reitoria”, integrando
sempre a mesma turma “11”: um grupo de acadêmicos unidos pelos mesmos
interesses e ideais. Minha geração foi fundadora do Diretório Livre do Direito
e a que experimentou a primeira greve dos docentes universitários. Assisti
junto a eles o retorno da democracia no Brasil: lembro-me da vinda do então sindicalista
Lula como palestrante em Santa Maria; acompanhei com meus colegas o retorno dos
exilados políticos; o episódio da Guerra das Malvinas; o atentado do Riocentro;
os primeiros passos para a nova constituição e o movimento pelas eleições
diretas. Eram tempos difíceis: os jovens estavam confusos e ainda havia muita
desconfiança no mundo acadêmico. Mas tínhamos esperança na busca de um novo
Brasil. Nossa formatura foi em 1983. Momento de muita emoção, onde a alegria da
conquista se misturava com a tristeza da separação e o medo do futuro.
Retornei
à instituição onze anos depois, desta vez como professora. Reencontrei alguns
dos meus mestres, agora como meus colegas. Pouca coisa havia mudado no Curso de
Direito: a mesma estrutura, o mesmo currículo, as mesmas obras na biblioteca,
as mesmas salas e carteiras. Porém a qualificação dos alunos passou a ser muito
maior, especialmente por conta da concorrência na seleção do vestibular. Foi um
grande desafio e um privilégio trabalhar com esses acadêmicos. Suas expressões,
olhares atentos e as perguntas inteligentes e instigantes, provocaram meu
comprometimento para novas pesquisas e aperfeiçoamento.
Nos dezesseis anos de atuação docente na UFSM,
passei grande parte como orientadora do estágio supervisionado. Na
“Assistência”, como carinhosamente chamávamos o Núcleo de Prática Jurídica, eu
conheci e orientei alunos repletos de teoria e sedentos da prática, emoldurados
pelo idealismo na busca da justiça.
No
velho casarão, ao lado da “Antiga Reitoria”, a maioria desses jovens teve seu
primeiro contato com o mundo profissional, interagindo com as mais diversas pessoas
e os mais diferentes dramas. Jovens que se apresentavam como instrumentos de
resolução dos problemas daqueles clientes e que, invariavelmente,
surpreendiam-se pela confiança e expectativa que aquela população depositava neles.
Muitas vezes as dificuldades práticas e os resultados obtidos os decepcionavam...
Lembro-me de um aluno fazendo “plantão” no
gabinete de um secretário municipal, para protestar pela cobrança da expedição
de uma certidão pública, já que a própria Constituição determinava a gratuidade.
Nunca me esquecerei de uma jovem estagiária levando pela mão uma pobre senhora
idosa, subindo a rua em direção ao prédio do INSS, para encaminhar um benefício
previdenciário. Recordo-me especialmente da algazarra e da alegria das turmas
na expectativa e planejamento das formaturas, mas, ao mesmo tempo, o que mais lembro,
é da seriedade e da responsabilidade daquela juventude no trato com o direito
“vivo”.
Naquele
velho casarão da Floriano Peixoto passaram muitas histórias de vida: o Senhor
Leontínio, velho morador de rua, que, apesar de ter seu processo indenizatório
vitorioso, não teve a chance de usufruir dos valores angariados, pois faleceu
antes. Seus olhos cheios de lágrimas na sala de audiência, ao pegar na minha
mão para dizer que não estava entendendo nada do que o juiz falava, em virtude
de seu problema de audição, fez com que esse momento fosse marcante na minha
vida profissional.
Dona Alzira, que era como a Irene de Manoel
Bandeira: negra, boa e estava sempre de bom humor. Ao conseguir êxito no seu
processo de usucapião, na sala de audiência do fórum, ela ouviu a leitura da
sentença como quem recebe um troféu.
A jovem Suelen que, satisfeita, recebeu o Mandado
de Retificação Civil, alterando seu prenome, antes registrado como Sueli, por
causa da ignorância do pai, que não soube informar adequadamente ao oficial o
desejo da mãe.
A sadia discussão entre os alunos sobre qual a
ação possessória a ser utilizada frente ao desespero da cliente que descobriu a
violação da sepultura de sua mãe, ao encontrar, no Dia de Finados, o túmulo
pintado de outra cor, ação dos familiares do “novo ocupante”.
Tantas ações de alimentos, filiações, separações,
reflexos dos desejos, necessidades e litígios que nascem na área familiar.
Conflitos que demonstram a preponderância da emocionalidade humana que hoje é
reconhecida como um valor jurídico. Todas essas histórias a serviço da formação
acadêmica dos jovens ávidos de aprendizagem.
Voltei
à realidade, atendi a velha senhora e encerrei minha aula tentando conter as
lágrimas e lutando pela firmeza na voz. Acho que meus alunos não perceberam
minha tristeza. Na sala dos professores não havia ninguém para eu me despedir.
Nem o quadro de formatura da turma de 1983 se encontrava mais pendurado na
parede do corredor. Estava velho demais e foi para um depósito. No seu lugar,
painéis mais modernos, com fotografias coloridas de rostos jovens e felizes.
De forma melancólica, terminei a minha
história com a UFSM evitando o velho elevador e descendo pelas escadas: do
quarto andar para a agitação da Rua Floriano Peixoto, passando lentamente na
frente do velho casarão da Assistência Judiciária.
Lindo, tia...muito emocionante. Tantas pessoas q muitas vezes não percebem o impacto que tem na vida das outras. As lembranças das vezes em que pudemos fazer a diferença na vida de outros vão nos acompanhar ao túmulo, e fazer a vida ter mais sentido. Mesmo que naquele momento, talvez não pudéssemos ter a dimensão do que estávamos fazendo.
ResponderExcluirEu queria estar lá para aplaudir de pé esta última aula! Eu não fui teu aluno em sala de aula, somente no estágio, com atendimento em duplas, não havendo este contato mais próximo. Mas minha felicidade, além de tê-la como homenageada na minha turma de formatura, é ser teu colega e estar próximo a esta rara sensibilidade que tu tens e divide com todas as pessoas. Se um dia eu acreditei que podia ser professor, foi porque encontrei pelo caminho pessoas como tu!
ResponderExcluirMarcelo Kümmel