O QUE SEPAROU A FAMÍLIA BRASILEIRA
Arte de Tom
Wesselmann
Eu sei o que desuniu a família
brasileira.
O momento em que ela abandonou o tradicional
almoço em casa e procurou a rapidez do restaurante a quilo.
Quando ela se desinteressou por completo da
residência. Quando trocou a diarista pela faxineira duas vezes por semana.
Quando começou a comprar comida congelada e
economizar com os talheres. Quando abdicou do pãozinho da padaria do final da
tarde.
Quando as saídas ao supermercado tornaram-se
frequentes. Quando o intervalo do trabalho diminuiu consideravelmente.
Quando a vassoura sumiu de trás da porta.
Quando o avental desapareceu do seu gancho.
Quando ter uma horta passou a ser irrelevante.
Quando o pai não mais visitou sua oficina de marcenaria na garagem.
Quando a tabuleta de bem-vindo acabou
dispensada. Quando o capacho se divorciou da porta.
Quando a mãe adiou o jardim. Quando a vista de
fora superou o carinho da decoração.
Eu sei eu sei eu sei o instante exato da
transformação. Foi na hora em que a gente parou de vestir o botijão de
gás.
Aquele ato mudou a mentalidade da classe
média.
Cuidar do botijão significava zelar pelos
detalhes, pela aparência e ordem doméstica. Mostrava uma preocupação com o olhar
das visitas. Um carinho com os coadjuvantes da rotina. Um capricho com as
gavetas e despensas e forros e fundos e cantos e quinas.
Não se podia deixar o gás daquele jeito sujo e
engraxado no coração de azulejos da cozinha. Correspondia a um ultraje, a falta
de educação, a ausência de asseio.
Ele precisava estar agasalhado. Todos os
objetos do mundo mereciam uma capa: os cadernos de aula, o filtro de barro, o
liquidificador, os ternos no armário, os carros na garagem.
Os objetos tinham que durar: geladeira era para
a vida inteira, o fogão era para a vida inteira, máquina de lavar era para a
vida inteira. Não se pensava em trocar, não se guardava o certificado de
garantia, absolutamente dispensável.
Minha mãe não largava os pedais da Singer nos
finais da tarde, elaborava tampas coloridas para as compotas de doces ou
revestimentos para penduricalhos.
É óbvio que costurava, mensalmente, uma saia de
renda para o gás, aproveitando sobras dos tecidos da cortina.
Eu achava que o botijão fosse uma irmã.
Meu irmão caçula já considerava um menino e
chamava sua roupa de poncho.
– Mas é floreado! – eu dizia. – Não existe
poncho floreado.
Vestir o botijão revelava o quanto nos
importávamos com o desnecessário.
O quanto tínhamos tempo livre para amar.
Tempo livre para amar a família.
Tempo livre.
fonte- ZN- 06/11/2012
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