Este texto foi publicado em maio de 1987 no jornal ZH. Seu autor é Wanderley Soares - Editor de Polícia do jornal. A crítica feita se refere a um caso concreto da época, mas verdade que relata é ainda a mesma. Vale a pena ler e reproduzir.
Do Incidente
Os dramas, as angústias, a solidão das criaturas que vivem em estado de miserabilidade são tão insondáveis, são tão esotéricos, são tão inatingíveis, quanto os momentos de luxúria, deslumbramento, êxtase, em que vivem aqueles que lucram com a miséria, aqueles que são tão mais poderosos quanto maior for a aldeia dos marginalizados. Mas não só os miseráveis vivem sob esse círculo de fogo que parece intransponível a não ser por um milagre dos céus ou por um ato de violência extrema.
Os pobres, os simplesmente pobres, têm para si demônios tão fortes quanto os que cercam a aldeia dos miseráveis. Ainda que não sejam pedintes, ainda que não roubem, ainda que trabalhem, podem apenas sonhar com a casa própria, com a mesa farta, com o carro à porta, com as crianças na escola, com o vinho ao jantar. Essas conquistas que parecem tão poucas, são alcançadas, nem sempre por inteiro, depois de uma vidade inteira de trabalho. O homem pobre, ao adquirir uam casa, está próximo de adqurir um túmulo.
Num óleo e até numa foto preto e branco, há uma certa beleza nas favelas num alto do morro, nos casebres à beira dos rios. Há alguma coisa de estóico nas mulheres e crianças carregando água em baldes, nos homens fazendo mais uma peça com um pedaço de lata e restos de madeira. Há alguma coisa de lírico quando a noite desce sobre a miséria e de longe as luzes denunciam a continuidade da vida e imagina-se um carteado, uma roda de cachaça, vultos suspeitos descendo para a cidade, uma criança chorando.
Os pobres, os simplesmente pobres, ainda conseguem manter em sua comunidade uma beleza real. Conseguem, em mutirão de famílias, colorir suas casas, emoldurar seus retratos, musicar seus domingos. Os miseráveis estão muito longes do óleo ou da foto em preto e branco. Vivem num ambiente surrealista, onde não se sabe a diferença entre a latrina e a cozinah, onde a mulher, com ou sem vocação para a protituição, é desintegrada ainda menina, onde o homem, ainda criança, se torna inimigo de si mesmo.
Mas há um detalhe trágico que vale com absoluta igualdade para pobres e miseráveis. Ambos são tacitamente ilegais, ambos sobrevivem ao arrepio da lei,ambos são suspeitos. E observam quem há uma terrível lógia para isso, pois são os pobres e miseráveis que lotam os presídios do País. Assim, é gerada uma deformação profissional em um ou outro grupo de policiais, militares ou civis. E quando o suspeito, além de pobre é negro, sua execução, em princípio, não é tratada como crime, ainda que se trate de um inocente: é um incidente.
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