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domingo, 3 de julho de 2011

Duas crônicas do Paulo Santana




Débitos e créditos
Eu queria passar para os meus leitores o que pode se considerar uma regra de comportamento – ou se quiserem um truque – para ser feliz.
Esse estratagema tem-me auxiliado profundamente nos últimos meses na luta da vida. É simples, mas é daqueles óbvios que se oferecem para a gente e nós não percebemos a oferta ou não a aproveitamos.
A felicidade é um estado de espírito. Ou você se considera feliz ou você não se considera feliz. Aliás, muitas vezes é mais importante considerarse feliz do que ser feliz. É preciso sempre colher-se o momento que passa, porque não há vida mais desperdiçada do que aquela definida no samba antológico de Ataulfo Alves, que contém um verso definitivo: “Eu era feliz e não sabia”. Isso é trágico.
É preciso saber-se que se é feliz.
É preciso encarar a vida como uma conta no banco. A conta tem créditos e débitos. A vida tem prazeres e tormentos. O segredo está em administrar a conta do banco, de tal sorte que há que se ter contentamento tanto quando saem os débitos quanto quando entram os créditos. O vital é manter-se a conta, tendo em vista que os débitos são necessários para conquistarem-se os créditos.
É fundamental conhecer-se que a vida tanto dá quanto cobra. É difícil, mas cumpre ter-se prazer e festejar quando sai o débito, não só quando entra o crédito. O que importa é que a conta mantenha-se aberta, isto é que a vida continue estuante. Até mesmo porque é imperioso que se racionalize, se se quiser ser feliz, que a vida não pode ser só constituída de benesses, mas inevitavelmente também de adversidades.
Eu não estou querendo que os meus leitores atinjam a perfeição existencial dos sábios, que sentem prazer no sofrimento. Como dizia o meu poeta sábio preferido, Augusto dos Anjos: “Bati nas pedras de um tormento rude/ e a minha mágoa de hoje é tão intensa/ que eu penso que a alegria é uma doença/ e a tristeza é a minha única saúde”. Seria exigir demais. Mas a minha verdade roça por aí.
É preciso que a tristeza, a preocupação, os problemas todos, até mesmo o drama, nos encontrem mobilizados para a vida e para a felicidade. Nós só seremos capacitados para a alegria, o contentamento interior e a felicidade se soubermos suportar com galhardia, ou até mesmo com prazer, todas as contrariedades. Isto consiste em compreender como naturais e absolutamente concernentes à vida todos os percalços que constituem o sofrimento.
Eu não estou dizendo novidades. Milhões de pessoas admiráveis ostentam no rosto e nos gestos uma luminosa alegria, embora seu íntimo se corroa de tristezas. Estas são as que entenderam a vida e que erguem o mundo. Eu estou só tentando encorajar a serem felizes e otimistas as pessoas que como eu se deixaram ou se deixam abater pelos obstáculos, fracassos ou até mesmo desgraças, sem perceberem que isso é também constante na vida e na conta do banco, absolutamente necessário para que se possa curtir agora ou vir a obter logo em seguida aquilo que mais se almeja: a felicidade.
Em suma, a vida, em todo o dia que se acorda de manhã, tem que nos apanhar mobilizados para a felicidade. E quando aparecer a infelicidade, a gente tem de gritar impávido para ela: “Não vem, que não tem”.
Tomara que me tenham entendido.

(Crônica publicada em 05/04/1998)
7 de junho de 2011




Morar separados


Quando preguei aqui nesta coluna uma modificação idealística no casamento, dizendo que será mais apropriado que ele comece a se dirigir no início deste século para a transformação de marido e mulher morarem em casas separadas, nem de longe eu quis bombardear a instituição da família.
Só um louco poderia querer extinguir a família, que é ainda a mais eficiente fortaleza contra as adversidades morais e materiais do tecido social.
O que eu quis dizer é que o casamento assim como está instituído atenta contra a liberdade das pessoas, que é afinal o maior valor a ser perseguido pelo homem no seu dever de busca da felicidade.
Consta da liberdade, logicamente, o exercício espontâneo da vontade pessoal. As pessoas têm também o direito de morar juntas se assim o decidirem.
Mas acontece que o casamento contém amarras que impedem na maioria das vezes a felicidade. Uma delas é o senso aguçado de “propriedade” que se estabelece entre marido e mulher.
Desde que se casam, se transformam em “meu marido” e “minha mulher”. E se desde já assim se pertencem, nada mais há que conquistar dali para a frente.
E o mesmo acontece com os filhos. Já que é “meu filho” ou é “meu pai”, isto é definitivo e desobriga os que estão envolvidos nesta relação a aprimorarem na prática este conceito, tornando-se dignos da condição de filhos ou de pais pelo aprofundamento e aperfeiçoamento dos vínculos afetivos. Se já é “meu”, nada mais preciso fazer para vir a ganhá-lo.
O melhor seria que o casamento funcionasse como uma venda em prestações, que se tivesse de quitar em período longo. E não como uma compra à vista, cuja aquisição é definitiva, não tendo doravante de se prestar mais nada.
Quando na verdade é no decorrer da vida que o marido poderá vir a ser verdadeiramente um marido; a mulher, uma mulher; um filho, o filho. Ou seja, isto só acontecerá em realidade na aferição das condutas recíprocas. E não pelo decreto do registro civil oficializado.
No caso do casamento, a idéia de morar separados é brilhante. Porque não finda o namoro. Porque permanece o encanto da incerteza. Porque será constante o fascínio do encontro, sem a obrigatoriedade cansativa dele, que o domicílio conjunto impõe.
Um casal que mora separado se perfuma e se veste com apuro e jeito para encontrar-se, enquanto que o casal que mora junto vai deixando perigosamente de lado esses cuidados pessoais, deixando cair pouco a pouco a peteca da sedução e se precipitando no abismo do fastio e da rotina.
Mas o principal condão utilitário que o domicílio separado no casamento encerra é que, no caso do fim da paixão, do amor ou da amizade profunda, o trauma da separação será quase que irrelevante perto da explosão dramática e inapagável que as rupturas dos que moram juntos significa. As vidas separadas já tinham até ensaiado despropositadamente esse desenlace, que será suave e facilmente suportado.
Enquanto que a separação dos que moram juntos deixa marcas indeléveis de sofrimento.
O que acontece mais freqüentemente é que casais que notoriamente já estão separados, se moram juntos, continuam morando juntos, para evitar o estrondo da separação física e domiciliar, o que lhes acarreta um martírio contristador.
Enquanto os casais que morarem separados terão até diante de si a vantagem da possibilidade atraente e luminosa, depois de assegurados da solidez indestrutível daquela relação, de um dia passarem a morar juntos.
Entre os que morarem separados, a união logicamente será sempre mais duradoura. Com chances bem maiores de ser imorredoura.
(Crônica publicada em 05/03/2000)
http://wp.clicrbs.com.br/paulosantana/?topo=13,1,1,,,13

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