O sagrado direito de morrer, por José J. Camargo *
A morena bonita com o belo sorriso que ilustrou os jornais de todo o mundo na discussão italiana sobre o direito de morrer não existia mais há muito tempo. A jovem de 21 anos que sofrera o trágico acidente naquele verão de 92 já não sorria, não reconhecia ninguém, nem respirava por conta própria. Por isso não me pareceu justo que as matérias na mídia mundial fossem ilustradas por fotos de um passado morto. Para a família, estas imagens só existiam em porta-retratos e na dolorosa parede da memória.
Em estado vegetativo, era um ser inerte, disforme e alienado. As contraturas e a atrofia muscular determinaram que todas as articulações ficassem deformadas e rígidas. O lindo cabelo preto já não brilhava e fora cortado bem curto, porque assim era mais fácil mantê-lo razoavelmente limpo apesar dos vômitos e das regurgitações e da saliva que, não sendo mais engolida, teimava em escorrer pelos lados da boca e a formar poças atrás da nuca, na junção com o travesseiro de plástico.
Os olhos amendoados na foto sorridente não tinham mais nenhuma expressão, vagavam perdidos na falta de horizontes e exigiam um cuidado constante porque a tendência de se manterem semiabertos e sem as piscadelas protetoras determinava uma conjuntivite crônica com a presença permanente de crostas.
Sem controle sobre os esfíncteres, não havia como evitar o uso de fraldas que nos últimos anos foram ficando progressivamente maiores para que não extravasassem as fezes, que diluídas pela urina tendiam a escorrer para os lençóis. Na verdade, quanto mais perfeita a vedação das fraldas, mais o paciente é obrigado a conviver com seus dejetos.
Por mais que a equipe de enfermagem se esforce, é quase impossível evitar as assaduras e as escaras, que são áreas de necrose da pele nos pontos de compressão dos ossos contra o colchão. A higiene pessoal de quem não abre as mãos, não estende as articulações e mantém uma contratura espástica das mandíbulas, é sempre incompleta e precária.
Semanas depois do acidente, a intubação pela boca fora substituída por um orifício no pescoço, através do qual uma cânula traqueal era mantida conectada a um aparelho de respiração artificial, 24 horas por dia. Outra sonda fora introduzida no abdômen diretamente no estômago, para alimentação, depois que se verificou que não tinha mais perspectivas de voltar a mastigar e engolir.
Com esta lesão cerebral grave, que por pouco não lhe provocou morte encefálica, Eluana Englaro fora acompanhada, com alguma expectativa, durante seis meses, período durante o qual as lesões neurológicas reversíveis se recuperam.
Não um, mas 14 semestres depois, Giuseppe, seu amado pai, sofrido e desesperançado, consciente de que esse martírio se arrastaria tão mais quanto mais perfeitos fossem os cuidados de sustentação médica disso que parecia tudo, menos vida, entrou na Justiça italiana com o pedido de cessação do atendimento, para cumprir a vontade da filha, que um dia, saudável e feliz, lhe manifestara o repúdio aos métodos irracionais de protelação da morte.
Dez anos depois, numa decisão que só o ministro Berlusconi seria capaz de considerar precipitada, a Suprema Corte italiana autorizou a ortotanásia, ou seja, a interrupção do suporte artificial da vida.
Essas discussões que comoveram a Itália e o mundo têm a idade da moderna terapia intensiva, uma das grandes conquistas da medicina moderna, capaz de salvar pessoas condenadas à morte poucas décadas atrás, mas também, em alguns traumatismos cranianos graves, de criar arremedos humanos suficientemente grotescos para gerar em pais extremados o antes impensável sentimento da morte desejada.
Todo o esforço da terapia intensiva na luta contra a morte só tem sentido se houver a chance de uma vida digna depois desse enfrentamento.
As teses que apoiam a defesa incondicional da vida, baseadas em sectários conceitos religiosos, precisam ser urgentemente recicladas de racionalidade e de compaixão.
Considero que neste caso todas as opiniões contrárias são desrespeitosas com o doloroso martírio do Giuseppe.
Ou haverá um juiz mais imparcial do que um pai que conviveu com o conflito desses sentimentos durante 17 anos e que, exaurido pelo sofrimento, decidiu que a morte em vida é a mais indigna de todas as mortes?
ZERO HORA.com
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